ARTÍCULOS
Leanete Teresinha Thomas Dotta* e Maria Amélia da Cos ta Lopes**
*Docente Colaboradora da Faculdade
de Psicologia e Ciências da Educação
da Universidade do Porto (FPCEUP),
Investigadora de Pós-Doutoramento
na FPCEUP, Membro do CIIE (Centro de
Investigação e Intervenção Educativa)
da FPCEUP e do Grupo de Investigação
EPSAI e Formação (Escola Pública Saberes,
Identidades e Formação). Interesses
investigativos: Formação de Professores,
Formadores de Professores, Identidades
Profissionais, Estudantes, Narrativas.
Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação da Universidade do Porto
Rua Alfredo Allen 4200-135 Porto
PORTUGAL | +351967637554
** Professora Catedrática da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Vice-Presidente do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) e Coordenadora da linha de investigação Formação, Saberes e Contextos de Trabalho e de Educação.É autora de diversas publicações no domínio das identidades profissionais em diversos campos e da formação inicial e contínua de professores e de outros profissionais. Atualmente, os seus interesses de investigação centram-se nas identidades dos formadores de professores e de enfermeiros, e de forma mais geral nas identidades dos professores do ensino superior. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Rua Alfredo Allen 4200-135 Porto PORTUGAL | +351934236924
Resumo: No contexto europeu, um conjunto de políticas integrativas abrigadas no que se convencionou chamar de Processo de Bolonha, introduziram diretrizes que se constituem numa oportunidade para repensar a formação profissional e transformar o ensino superior num processo de desenvolvimento da autonomia, da participação significativa e da disponibilidade para o autodesenvolvimento ao longo da vida. Sob esta perspectiva este estudo objetivou discutir como se dá o desenvolvimento da autonomia dos estudantes em formação inicial para o ensino tendo em conta os climas de formação nos quais estão inseridos, a partir das narrativas de formação dos próprios estudantes. As narrativas revelaram uma autonomia declarada quando as estudantes falam sobre as implicações do Processo de Bolonha e o estudo autónomo. Por outro lado, pela abordagem narrativa, na sua perspectiva tridimensional, são reveladas dimensões de uma autonomia adquirida, construída, que é forjada na trajetória biográfica, relacional e institucional das estudantes ainda antes do seu ingresso na formação inicial.
Palavras chaves: Narrativa; Formação profissional; Autonomia; Trajetória; Ensino superior
What students’ narratives show about the development of autonomy in their initial teacher training
Abstract: In the European context, a group of integration policies, included in the process of Bolonia, introduced lines of action as an opportunity to revise professional training and transform higher teaching through a process of development of autonomy, meaningful participation and availability for personal development through life. From this perspective, this paper analyzes the development of autonomy in students at initial teacher training, using their narratives and keeping in mind the different training situations in which they are immersed. These narratives revealed a declared autonomy when students speak about the implications of the process of Bolonia and their own learning. On the other hand, through narration in its tridimentional perspective, acquired dimensions of autonomy are revealed, which are built in their biographic, relational and institutional trajectories, even before starting the initial training.
Keywords: Narratives; Professional training; Autonomy; Trajectory; Higher education
A globalização e os imperativos da sociedade do conhecimento
multiplicaram e aprofundaram as relações das
instituições de ensino superior com o mundo que as cerca. Há um consenso sobre o processo de democratização do ensino
superior, que impõe o desafio da formação de estudantes com
novas características —idades variadas, origens sociais e culturais
diversas (Sousa, Lopes e Ferreira, 2013) e da produção de
conhecimentos úteis e relevantes.
No contexto europeu as preocupações com esses processos
estão traduzidas num conjunto de políticas integrativas, iniciadas na década de 2000, que propõe reformas
com vistas à modernização do ensino superior, à sua expansão, ao aumento de eficiência, à preservação
da excelência, à investigação e inovação,à ampliação do acesso à educação e oportunidades
de aprendizagem ao longo da vida.
Tais medidas, vistas de forma articulada,
lançam grandes desafios às instituições de ensino
superior em termos dos seus planos de
estudo e dos métodos de ensino. Contudo, o
quadro sugere uma forte oportunidade para
repensar a formação profissional no sentido
de transformar a educação superior num processo
de desenvolvimento da autonomia, da
participação significativa e da disponibilidade
para o autodesenvolvimento ao longo da vida
(Dotta e Soares, 2013; Dotta e Lopes, 2013;
Dotta, Marta, Ferreira e Diogo, 2013), o que
implica uma abordagem de ensino centrada
nos estudantes.
A aprendizagem centrada nos estudantes
é uma abordagem em que as necessidades e
a voz do estudante são colocadas em relevo
(Fielding, 2011). É caracterizada pelo uso de
métodos que envolvem o estudante na construção
do processo de aprendizagem e é entendida
como um processo ativo e interativo que
conduz à aprendizagem significativa (Bovill,
Coock-Sather & Felten, 2011). Os estudantes
são conduzidos a uma maior responsabilidade
pela sua própria formação e aodesenvolvimento
da autonomia. A autonomia é entendida
como a capacidade de desenvolver atitudes,
conhecimentos e competências adequadas
para si mesmo e em cooperação com os outros
(Cakir & Balcikanli, 2012) e decorre de um
respeito mútuo na relação estudante-professor
(Cook-Sather, 2006). Entretanto, a autonomia
não é uma capacidade dada à priori, exige
aprendizado, que passa fundamentalmente
pela relação entre estudantes e formadores
(La Ganza, 2008) e está inserido em climas de
formação (Dotta e Lopes, 2014) favoráveis ao
seu desenvolvimento. As questões relacionais
são fulcrais na constituição dos climas de formação
e as identidades académicas dos formadores
exercem um papel preponderante no
desenvolvimento da autonomia dos estudantes
(Dotta, 2011).
Entender como os estudantes desenvolvem
a autonomia a partir da formação profissional
inicial significa contribuir para a melhoria da
educação em todos os níveis, especialmente
no sentido de promover uma maior visibilidade
da importância dos alunos/estudantes e
da superação da lógica da educação bancária,
uma vez que professores autónomos tendem a
desenvolver a autonomia nos seus alunos (La
Ganza, 2008). Nesta perspectiva se estabelece
o objetivo deste artigo: discutir como se dá o
desenvolvimento da autonomia dos estudantes
em formação inicial para o ensino tendo em
conta os climas de formação nos quais estão
inseridos, com especial importância às identidades
académicas dos formadores de professores,
a partir das narrativas de formação dos
próprios estudantes.
A abordagem da investigação narrativa tem
sido amplamente utilizada nos estudos sobre o
desenvolvimento profissional dos professores.
O seu uso justifica-se pelo seu potencial de
desvendar as complexidades envolvidas no desenvolvimento
profissional. Significa visualizar
o fenómeno a ser investigado como um espaço
de vida tridimensional em curso onde temporalidade,
sociabilidade e lugar estão em articulação
permanente (Xu & Connelly, 2009); e se
fundamenta na ideia de que os conhecimentos
profissionais, no caso deste estudo o desenvolvimento
da autonomia, são moldados na “paisagem
do conhecimento profissional” (Clandinin
e Connely, 1995).
Trata-se de um método onde os participantes
frequentemente se envolvem intensamente
no processo e assumem-se como coinvestigadores
(Savin-Baden & Van Niekerk,
2007). Implica investigar com os sujeitos e não
meramente fazer investigação sobre os sujeitos
(Atkinson, 2010) e na possibilidade dos participantes
construírem conhecimentos (Coulter,
Michael e Poynor, 2007). A investigação narrativa,
sem desconsiderar as suas limitações, é encaminhamento frutífero para dar voz aos
estudantes sobre o desenvolvimento da sua autonomia.
O Processo de Bolonha representou a reformulação dos propósitos do ensino superior nos países pertencentes à União Europeia do qual a formação inicial de professores não ficou isenta. Neste contexto, em Portugal, a publicação do Decreto-Lei nº43/2007 anunciou relevantes transformações na formação inicial de professores relativamente aos modelos que a antecedem. A habilitação profissional passa a ser conferida pelo grau de mestre como condição indispensável para o exercício da docência em qualquer nível ou área de ensino. Assim, a formação inicial de professores dá-se em dois ciclos —Licenciatura (1º ciclo) e Mestrado (2º ciclo).
O processo de recolha/construção dos dados,
reflexão e análise ocorreu de forma integrada.
As observações realizadas nas aulas do
primeiro ciclo e segundo ciclo de formação
(Licenciatura em Educação Básica e Mestrado
em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1º Ciclo
do Ensino Básico), as notas de campo, as narrativas
de quatro estudantes do último semestre
do segundo ciclo de formação e os referenciais
teóricos estiveram em diálogo constante.
As narrativas foram construídas de forma dialógica
entre duas estudantes e a investigadora.
A opção por esta via de narrativas dialógicas
fundamenta-se na perspectiva da “ressonância
narrativa” (Conle, 1996). O processo de ressonância
consiste no desenvolvimento de si mesmo
em interação com os outros, através das
narrativas, ou seja, por meio das narrativas de
experiências, itens específicos de experiências
atuais ou passadas são conectados às próprias
narrativas ou às de outros. Neste processo são
criadas, de forma inconsciente, correspondências
metafóricas entre dois conjuntos de experiências
narradas.
Para efeito deste artigo são apresentadas
análises das narrativas dialógicas de duas estudantes,
escolhidas por serem casos ilustrativos
com os quais podemos aprender (Shulman,
1986) sobre a construção da autonomia na
formação inicial de professores. As narrativas
foram analisadas tanto na sua individualidade
e especificidade como na sua relação uma com
a outra e em relação com as notas de campo.
Foi um processo de pensar narrativamente,
imaginar o fenómeno a ser investigado como
um espaço de vida tridimensional e como uma
estrutura conceitual de análise dos dados.
As narrativas das estudantes, Carla e Andréia
(pseudônimos), são apresentadas metanarrativamente. É importante destacar que as
duas estudantes realizaram o primeiro ciclo da
formação em instituições de ensino superior
distintas e o segundo ciclo na mesma instituição.
Carla teve uma trajetória de aluna na educação
básica e secundária marcada pelo esforço
pessoal e pela busca constante do aprender,
não obstante, a lembrança mais presente
que ela tem da escola foi o seu primeiro dia de
aulas na educação básica e que gerou alguma
desilusão. Pensava que “ia começar logo a abrir
os livros e trabalhar, mas cheguei lá e fizemos
só um desenho, (...) achava que ia começar a
trabalhar, a fazer as letras e os números e acabou
por não ser assim”. A escolha profissional
foi delineada antes do ingresso no ensino
secundário —o curso de humanidades, onde
se consolidou. Ingressou na Licenciatura em
Educação Básica no terceiro ano de implantação
do Processo de Bolonha e foi no decorrer
da Licenciatura “pela inserção na prática
pedagógica” que se decidiu pelo Mestrado em
Educação Pré-Escolar e Ensino do 1º Ciclo do
Ensino Básico, “que eram dois contextos em
que eu me sentia mais à vontade e mais competente
para”. Os primeiros anos de formação
refletiram as necessidades de (re)adaptação às
normativas do Processo de Bolonha. Foi um
esforço conjunto da instituição, dos formadores
e estudantes para encontrar o caminho
mais eficaz naquele momento ainda considerado
de transição.
Durante os três anos da Licenciatura, Carla
sentiu que o desenvolvimento da sua autonomia
foi gradual. Tem início com a conquista
de disposições para o “estudo independente” e evolui para o “implantar atividades” no estágio,
embora com supervisão e acompanhamento
dos professores supervisores e educadores/professores cooperantes1. Contudo, é naúltima etapa do estágio que se sente “autorizada” a “decidir estratégias e ações” que geram
reflexões autónomas e partilha com os pares.
No mestrado a autonomia é sentida com mais
intensidade, sobretudo no estágio, embora faça
questão de ressaltar que era uma “autonomia
supervisionada” pelos formadores e educadores/
professores cooperantes.
A disposição para a proximidade com os
estudantes demonstrada pelos formadores foi
um aspecto que marcou os primeiros anos da
formação inicial e estendeu-se no decorrer de
toda trajetória de formação. Essa proximidade,
inicialmente, era transpassada pelas críticas a
comportamentos supostamente característicos
de alunos do ensino secundário, bem como sobre
a ausência de alguns conhecimentos: “vocês
já deviam saber isto. Não se admite vocês
não saberem”. Tal situação gerava certo conflito
e impedia uma completa aproximação regulada
pelo receio inicial de abordar os formadores,
mesmo nos momentos de tutoria. Para
Carla essa postura serviu de “alerta” e contribuiu
para o crescimento, aliado ao que ela reitera
como sendo “um ensino muito diferente
mesmo”, marcado pela ausência de manuais
e onde o diálogo prevalecia, principalmente,
na resolução de conflitos. A disposição por
parte de alguns formadores de ouvir as sugestões
das estudantes fez-se notar e
é justificada pela “novidade” da
organização curricular proposta
por Bolonha e que gerava alguma
apreensão. As sugestões, quando
aceites, traziam mudanças para as
turmas subsequentes.
Carla, imersa no seu empenho
pessoal com os estudos e atividades
respectivas ao curso, observava
com distanciamento e alguma
perplexidade a competição que
regia as relações entre as colegas,
principalmente no primeiro ciclo
da formação. Sob o seu olhar, a
disputa pelas melhores notas resultava
num extremo individualismo
que impedia os processos
colaborativos e o crescimento
conjunto do grupo. No mestrado
a competição acirrada se dissipou
dando lugar a relações mais solidárias.
O estágio, mais fortemente no
segundo ciclo da formação, é assumido
como espaço privilegiado
da ação autónoma. Em grupos, as
estudantes podem decidir sobre as
atividades a realizar, embora segundo
algumas diretrizes estabelecidas
pelas educadoras/professoras
cooperantes e a sua supervisão.
Nesse caso o desenvolvimento da autonomiaé fundamentado essencialmente pelos processos
reflexivos implicados. Tratou-se não apenas de
aprender na prática, mas pela prática com o
intermédio da reflexão sobre a prática e a sua
partilha com os pares e formadores.
Em síntese, Carla, de forma explícita vincula
o desenvolvimento da autonomia ao estudo
independente e à tomada de decisões
na prática do estágio. Embora, com ênfase na
importância e “segurança” da presença de uma
supervisão, quer dos educadores/professores
cooperantes quer dos formadores supervisores.
Por outro lado, de forma implícita, é possível
detectar nas narrativas de Carla o desenvolvimento
da sua autonomia no seu percurso de
formação profissional especialmente quando
narra o seu envolvimento com os estudos. A
busca consciente da construção de mecanismos
de aprendizagem significativos, independente
da existência, por vezes, de dinâmicas e práticas menos positivas dos colegas e mesmo
dos formadores, indica o seu compromisso
pessoal com a sua formação e com a futura
profissão.
Andreia inicia a sua trajetória escolar na
educação de infância. A educação básica foi
marcada por situações que interferiram negativamente
no seu desempenho, mas que não a
fizeram perder a vontade e o entusiasmo pelo
aprender. Nos primeiros quatro anos de escolarização,
embora tenha tido uma professora
com atitudes menos imparciais, não deixou
de manifestar o seu empenho em aprender.
Contudo, foi nos dois anos seguintes que a sua
paixão pelo aprender ganhou asas: “Eu gostava
de aprender, gostava de saber os conteúdos,
gostava de saber fazer tudo”. Os três últimos
anos da Educação básica foram os mais difíceis,
enfrentou problemas pessoais que refletiram
no desempenho e que geraram reações
menos positivas dos colegas, mas que foram
superados e que deram novo impulso para o
ingresso no Ensino Secundário. Escolheu uma
nova escola e lá, com bons professores, outros
nem tanto, mas com um “bom ambiente”, apesar
de colegas menos empenhados, conseguiu
dedicar-se ao estudo e aprender, mesmo que
muitas vezes sozinha. Desenvolveu estratégias
de estudo que minimizassem aquilo que entendia
ser oferecido de forma menos adequada
na escola. Procurava ficar o máximo de tempo
na escola: “Eu tinha imensa vontade de estar
na escola. Eu gostava imenso, eu fazia tudo,
por tudo, por tudo para ficar o máximo de
tempo possível na escola (...). No secundário
eu arranjava todas as atividades extracurriculares
para ficar o máximo de tempo na escola.
Eu gostava.” Escolheu a educação como futuro
profissional ainda antes do secundário e
ingressou na licenciatura em educação básica
no segundo ano da implantação do Processo
de Bolonha, quando, segundo ela, ainda havia
pouca informação efetiva sobre o processo,
apesar de a instituição demonstrar clareza e
segurança na organização dos cursos segundo
as novas diretrizes. A escolha do mestrado
foi refletida e baseada num ano dedicado ao
voluntariado, após a licenciatura. Andreia trabalhou
como voluntária em duas instituições,
uma com adolescentes e outra com crianças, e é com essa experiência que opta pela educação
de infância em primeira instância. Contudo,
tendo em conta as questões da empregabilidade
volta-se a um curso que abra as possibilidades
para dois campos de atuação –Mestrado
em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1º Ciclo
do Ensino Básico.
Andreia, na licenciatura, situa a questão
da autonomia em dois âmbitos. Nos aspectos
legais das alterações propostas por Bolonha:
“nossos professores ainda estavam a habituar
ao que era isto da autonomia de Bolonha, a autonomia
do aluno, porque a carga horária na
escola, no ensino superior, diminuiu também
e o trabalho autónomo aumentou”. Ou seja, a
autonomia estava muito ligada ao estudo autónomo
o que não foi considerado como uma
“novidade”, afinal: “temos que estudar sozinhos,
ninguém vai estudar conosco, mas isso já
fazia no secundário”. O outro âmbito de desenvolvimento
da autonomia foi o do estágio,
mas, embora houvesse incentivo à iniciativa, à
construção e à produção autónoma, havia supervisão
e espaços de tutoria, e recorrer a tais
espaços era “muito valorizado”.
De forma geral a licenciatura foi para Andreia
um conjunto de boas surpresas: metodologias
de trabalho diferentes, o que a fazia
pensar: “agora é que eu vou aprender a sério.
Agora é que isso vai ser a sério”. Os professores
se colocavam num nível de proximidade com
os estudantes, investiam e exigiam muito dos
estudantes. A ausência de manuais também a
surpreendeu. Por outro lado, de forma negativa,
surpreendeu-se com a excessiva competitividade
da turma. O objetivo que deveria ser
aprender, passou a ser o ser sempre melhor do
que o outro. Contudo, no segundo ano da licenciatura,
esse espírito de competitividade deu
lugar a compreensão de que juntos poderiam
fazer mais e melhor: “Se com os meus erros tu
também puderes aprender, ótimo, porque depois
tu vais cometer erros que eu não cometi
e eu posso aprender com os teus erros e assim
sucessivamente, e fomos crescendo muito”.
Andreia teve também outra experiência
singular, fez um ano da licenciatura num outro
país, o que lhe permitiu agregar novos conhecimentos
e exigiu um novo grau de autonomia,
pessoal e acadêmica. A Licenciatura foi ainda
marcada pela possibilidade de expressarem os
seus pontos de vista e darem feedback aos formadores
sobre a organização do curso, como
parte dos processos de (re)adaptação ao Processo
de Bolonha.
Foi no mestrado que Andreia notou a exigência
da autonomia: primeiro por conta de
defasagens de conteúdo identificadas, o que
exigiu um novo nível de estudo autónomo; e
segundo nas atividades de estágio. Os processos
reflexivos estão mais presentes e de forma
mais “natural”. Na sua trajetória escolar e acadêmica
teve sucessos e fracassos, surpresas positivas
e desilusões, decorrentes, principalmente,
do embate entre a sua grande vontade de
aprender, de saber e de algumas inadequações
entre essas expectativas e do que encontrou ao
longo da sua trajetória escolar e acadêmica. O
estudo autónomo fez parte da sua trajetória escolar
praticamente desde o início, decorrente
da sua expressiva vontade de aprender. Vê na
licenciatura a possibilidade de aprofundar as
disposições para a busca do saber e no mestrado
a oportunidade de exercer a autonomia,
especialmente nas atividades de estágio.
Carla e Andreia fizeram a mesma licenciatura
em educação básica, mas em instituições
diferentes, contudo, algumas semelhanças destacam-
se nas percepções que ambas tiveram
dos respectivos cursos. Nas duas instituições a
preocupação com uma formação de qualidade
e adequada às novas diretrizes propostas a
partir do Processo de Bolonha foi vivenciada
pelas duas estudantes, especialmente pelo envolvimento
das perspectivas e proposições dos
estudantes na organização e reorganização dos
cursos. Ambas as estudantes viram desde as
primeiras experiências de imersão no contexto
da prática profissional (estágios) o ambiente
propício para a ação e o trabalho autónomo,
da mesma forma ressaltam a supervisão dessas
atividades por parte dos formadores e/ou educadores/professores cooperantes. Outro aspecto
comum foram as surpresas positivas com
relação às metodologias utilizadas pelos formadores,
a ausência da utilização de manuais
e as relações de proximidade e diálogo dos formadores
com os estudantes. A percepção de
uma competitividade acirrada e mais intensa
nos primeiros anos também foi compartilhada
pelas duas estudantes e avaliada como restritiva
ao crescimento acadêmico coletivo. Num
âmbito mais pessoal, Carla sente um desenvolvimento
gradual da autonomia no decorrer da
licenciatura, mais ligado ao estudo autónomo,
enquanto Andreia sente que aprofundou essa
disposição que já havia desenvolvido e utilizado
intensamente antes.
Ambas tiveram a possibilidade de fundamentar
a escolha do curso do mestrado nas experiências
práticas que tiveram na licenciatura,
embora Andreia tenha ampliado a busca por
uma segurança na escolha em atividades de
voluntariado. Concordam que a autonomia e
a reflexão são o ponto forte do mestrado e que
passou a ser uma disposição “natural”, embora
tenham sempre reforçado que essa autonomia
era “supervisionada”, ou seja, acompanhada
pelos formadores.
O conjunto de dados analisados e em especial
as narrativas dialógicas das estudantes
em formação inicial para a docência revelam
que as relações que as estudantes mantêm
com os estudos, com os processos de formação,
indicam características de autonomia
desenvolvidas nos percursos anteriores à formação
inicial —trajetória biográfica como
referida por Dubar (1997)— e biografia institucional
(Britzman, 2003); que os formadores
e os colegas são centrais no desenvolvimento
da autonomia; que o espaço do estágio é um
lugar privilegiado de exercício da autonomia;
que as implicações do Processo de Bolonha se
fizeram sentir no aumento do trabalho autónomo
e na possibilidade da participação dos
estudantes na organização da sua formação.
Neste último caso a solicitação à participação
dos estudantes estava mais ligada a preocupação
com uma melhor organização do curso
segundo as novas diretrizes do que propriamente
com uma formação centrada nos estudantes.
As narrativas revelaram processos de autonomia
em formação e através da formação.
Trata-se de uma autonomia declarada quando
as estudantes falam sobre as implicações do
Processo de Bolonha e do estudo autónomo.
Por outro lado, pela abordagem narrativa, na
sua perspectiva tridimensional (temporalidade,
sociabilidade e lugar), são reveladas dimensões
de uma autonomia adquirida, construída,
que é forjada na trajetória biográfica, relacional
e institucional das estudantes ainda antes
do seu ingresso na formação inicial. Contudo,
os climas de formação (Dotta e Lopes, 2014)
podem potencializar ou criar obstáculos às
disposições de autonomia trazidas pelos estudantes.
Notas
1 Os professores supervisores são os formadores da instituição de ensino superior que acompanham as atividades de estágio; os educadores/professores cooperantes são os educadores/professores das escolas designados para acompanhar as atividades de estágio nas escolas.
Detalle “La sombra de las marionetas”, acrílico sobre bastidor.
Ramiro Achiary
“La sombra de las marionetas”, acrílico sobre bastidor. Ramiro Achiary
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Fecha de Recepción: 15 de mayo de 2014
Primera Evaluación: 22 de junio de 2014
Segunda Evaluación: 29 de junio de 2014
Fecha de Aceptación: 29 de junio de 2014
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