DOI: https://dx.doi.org/10.19137/praxiseducativa-2024-280207


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DOSSIER

O Tehêy de Pescaria do Conhecimento da professora indígena Dona Liça Pataxoop como metodologia para a defesa do corpo-território das mulheres de Abya Yala

El Tehêy de Pescaria do Conhecimento de la profesora indígena Dona Liça Pataxoop como metodología para la defensa del cuerpo-territorio de las mujeres de Abya Yala

The Tehêy de Pescaria do Conhecimento by indigenous teacher Dona Liça Pataxoop as a methodology for defending the body-territory of the women of Abya Yala

Áquila Bruno Miranda

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

aquilabruno@ymail.com

ORCID 0000-0001-9106-5907

Claudia Mayorga

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

claudiamayorga@ufmg.br

ORCID 0000-0003-1728-0726

Resumo

Diante das violências produzidas pela colonialidade e as resistências tecidas pela multiplicidade presente no corpo-território de mulheres indígenas e negras. Este artigo busca refletir sobre as contribuições das escritas do Tehêy de Pescaria do Conhecimento da professora indígena Dona Liça Pataxoop  para a tessitura de pesquisas comprometidas com os saberes,  as memórias ancestrais e o corpo-território de mulheres indígenas e negras. Neste estudo o ato de “Tehêyá” é assumido como um letramento para a formação política e subjetiva para o corpo-território, bem como   um dispositivo metodológico para “afinar o nosso olhar”, para pensar alternativas que possam ligar os vários mundos que foram fragmentados pelo Sistema Moderno/Colonial. Concluímos que o Tehêy de Pescaria do Conhecimento coloca-se como um fazer-saber interseccional, corporificado, localizado e autobiográfico.  Posições que  reafirmam  enquadramentos éticos e metodológicos comprometidos com as vozes das mulheres de Abya Yala e também questionam a objetividade defendida pelas ciências tradicionais.

Palavras chave: Tehêy de Pescaria do Conhecimento; feminismo decolonial; metodologias científicas; mulheres indígenas; mulheres negras.

Resumen

Frente a la violencia producida por la colonialidad y la resistencia tejida por la multiplicidad presente en el cuerpo-territorio de las mujeres indígenas y negras. Este artículo busca reflexionar sobre las contribuciones de los escritos del Tehêy de Pescaria do Conhecimento de la profesora indígena Dona Liça Pataxoop al tejido de investigaciones comprometidas con el conocimiento, las memorias ancestrales y el cuerpo-territorio de las mujeres indígenas y negras. En este estudio, el acto de "Tehêyá" es visto como una forma de alfabetización para la formación política y subjetiva del cuerpo-territorio, así como un dispositivo metodológico para "afinar la mirada", para pensar alternativas que puedan conectar los diversos mundos fragmentados por el Sistema Moderno/Colonial. Concluimos que Tehêy de Pescaria do Conhecimento se posiciona como un modo de conocer interseccional, encarnado, localizado y autobiográfico.  Estas posiciones reafirman marcos éticos y metodológicos comprometidos con las voces de las mujeres de Abya Yala y también cuestionan la objetividad defendida por las ciencias tradicionales.

Palabras clave: Tehêy de Pescaria do Conhecimento; feminismo decolonial; metodologías científicas; mujeres indígenas; mujeres negras.

Abstract

Faced with the violence produced by coloniality and the resistance woven by the multiplicity present in the body-territory of indigenous and black women. This article seeks to reflect on the contributions of the writings of the Tehêy de Pescaria do Conhecimento by indigenous teacher Dona Liça Pataxoop to the weaving of research committed to knowledge, ancestral memories and the body-territory of indigenous and black women. In this study, the act of "Tehêyá" is seen as a form of literacy for the political and subjective formation of the body-territory, as well as a methodological device for "sharpening our gaze", to think of alternatives that can connect the various worlds that have been fragmented by the Modern/Colonial System. We conclude that Tehêy de Pescaria do Conhecimento positions itself as an intersectional, embodied, localized and autobiographical way of knowing.  These positions reaffirm ethical and methodological frameworks committed to the voices of the women of Abya Yala and also question the objectivity defended by the traditional sciences.

Keywords: Tehêy de Pescaria do Conhecimento; decolonial feminism; scientific methodologies; indigenous women; black women.

Recibido: 2024-02-09 | Revisado: 2024-04-22 | Aceptado: 2024-04-22

Introdução

Valor do Tehêy: a terra está se alimentando[1]

Fonte: Werymehe Alves Braz Pataxxop, 2019

     A colonização não pode ser entendida como uma etapa histórica já superada, uma vez que as lógicas opressivas que contornam os corpos, as vidas, as identidades e os destinos das mulheres “incivilizadas” latino-americanas ainda persistem e se reatualizam em cenas do cotidiano. Nesse campo de produção, contínua, de invisibilidades e de disputas, desde a década de 1980, os povos que resistem às estratégias coloniais têm ganhado força nos países da América Latina. Vozes que trazem para as lutas sociais a necessidade de ampliar os olhares e escutas para “outros sujeitos” com raça, classe e sexo-gênero distintos naqueles propostos pelo Sistema Moderno/Colonial de Gênero (Maria Lugones, 2014).  

Para Yuderkys Miñoso, Diana Correal e Karina Muñoz (2014), as articulações entre as feministas da América Latina, as mulheres indígenas e as afrodescendentes têm  produzido um contexto favorável para a criação de um olhar  feminista  decolonial nos espaços  acadêmicos,  nas lutas sociais e políticas. O feminismo decolonial nos convoca a  pensar nas violências produzidas pela colonialidade e as resistências a esse fenômeno, a partir da multiplicidade presente nos corpos e histórias das mulheres subalternizadas. A multiplicidade faz-se no encontro com as outras, outras que não são estáticas e nem fossilizadas, outras que revelam “modos criativos de reflexão, comportamentos e relacionamentos”, modos que se refazem continuamente como uma “recriação criativa” (Maria Lugones, 2014, pp.  948-949).

No que diz respeito ao espaço acadêmico, Ricardo Castro e Claudia Mayorga (2023, p. ) afirmam:

O eurocentrismo, portanto, foi o âmbito que alicerçou a construção das universidades latino-americanas, o que têm tido, então, o compromisso de disseminar conhecimentos e formas de ensino superior que tomam como referência parâmetros da universidade renascentista europeia. Nessa direção, a universidade torna-se não só o espaço privilegiado para a produção do conhecimento, mas se estabelece, também, como a grande instituição republicana capaz de estabelecer os limites entre o saber legítimo e ilegítimo, bem como aquela que seria capaz de produzir uma prática de pensamento - tida como superior - que pudesse avaliar o passado, o presente e o futuro da vida em sociedade.

Considerando as relações de poder-saber, na qual os colonizadores buscam, sistematicamente, aniquilar as culturas existentes e colonizar os corpos e o imaginário dos povos não-europeus, nessa escrita assumimos os saberes, as memórias ancestrais e o corpo-território da população negra e indígena como dispositivos para o enfrentamento das violências produzidas pelo apagamento colonial na pesquisa acadêmica. Ainda segundo Ricardo Castro e Mayorga (2023, p. 14):

A postura, aqui, não é recusar os métodos tradicionais da Europa como local do conhecimento. Mas é, sobretudo, deslocar o continente europeu da ideia de que esse é único lugar geográfico que pode criar as regras do jogo do conhecimento legítimo e científico. E, para isso, é preciso se dispor a encontrar com diferentes formas de experiência da vida sensível que criam outros olhares epistemológicos.

Apesar do projeto de genocídio que atravessou o corpo negro, o corpo indígena e os encontros entre esses grupos, as nossas vivências e as articulações políticas e afetivas entre mulheres negras e indígenas têm construído possibilidades de bem viver e fraturas no Sistema Moderno/Colonial de Gênero (Maria Lugones, 2014). Tais articulações têm evidenciado elementos históricos, culturais e saberes tradicionais que foram negados e/ou apropriados pela historiografia oficial.

As narrativas de mulheres negras e indígenas, construídas na oralidade, convocam-nos a assumir um compromisso, como educadoras e pesquisadoras, com as memórias acerca dos encontros de cuidado entre essas mulheres. A mestra quilombola Cassia Kidoiale afirma que, no período colonial, foram os povos indígenas que primeiro acolheram os negros que fugiam das fazendas escravocratas. Seu relato indica que as experiências tecidas “entre” mulheres indígenas e negras constituíram as identidades e as resistências do corpo-território das mulheres que habitam Abya Yala[2] e, por isso, partimos da hipótese de que há um grande investimento científico e econômico para que os nossos encontros não sejam narrados.

Sobre o estudo acerca do encontro entre as populações indígenas e negras, o antropólogo e pesquisador branco Marcio Goldman (2014, p. 215-216) afirma que:

Nesse sentido, não é exagerado afirmar que o encontro entre “afros” e “indígenas” nas Américas é o resultado do maior processo de desterritorialização e reterritorialização da história da humanidade. Por isso, não deixa de ser curioso e espantoso que tenha recebido tão pouca atenção — e isso de dois modos complementares (...) A nós, por nossa vez, caberia acompanhar esse movimento e libertar a relação afroindígena da dominação e do ofuscamento produzido pela presença dessa variável “maior”, os “brancos”.

Segundo as antropólogas e pesquisadoras brancas Denise Grupioni e Lúcia Andrade (2015), há mais de 200 anos a população negra escravizada buscava sua liberdade fugindo de fazendas localizadas na cidade do Baixo Amazonas (Pará) e encontrava refúgio nas águas mansas do Rio Trombetas, região habitada por povos indígenas. No processo de construção dos quilombos, negros/as e indígenas teceram uma relação de convivência, marcada por momentos de trocas, de tolerância, de conflitos, experiências que trouxeram aprendizados mútuos e que influenciou profundamente esses povos. Sobre esses encontros, Eurípedes Funes (2015, p. 25) destaca sobre os/as negros/as:

Havia o gosto da liberdade, mas também enormes desafios, a começar pelo relacionamento com um novo espaço, a aprendizagem de novos caminhos e a sobrevivência nas matas com o que a natureza lhes dava. Aprendizado feito em grande parte com o nativo, mestre conhecedor do meio ambiente, que tinha o controle sobre aquele território que era seu. Depreende-se dessa fala a alteração na alimentação, com a inclusão de novos gêneros até então ausentes em seu padrão alimentar. Extrair da floresta seus alimentos tornava-os usualmente próximos aos índios – na perspectiva de construção de uma outra identidade –, com os quais dividiam o mesmo espaço.

Em 1986, conforme relato de religiosos que visitavam os quilombos da região norte do Brasil, essas comunidades eram formadas por pessoas negras e indígenas que realizam trocas de solidariedade culturais observadas em “alguns objetos de uso cotidiano, como o jamaxi, a peneira, ambos feitos de fibras, sinais evidentes de influência indígena”, nas colheitas de castanha, bem como na presença das características fenotípicas negras em diversas aldeias indígenas (Eurípedes Funes, 2015).

Em Minas Gerais, na segunda metade do século XX, o encontro entre os povos indígenas e a população negra ocorreu, muitas vezes, de forma violenta, nos aldeamentos. Conforme Maria Isabel Chrysostomo e Higor Santos (2022), esses eram espaços constituídos por meio da articulação entre missionários, fazendeiros e o Estado, que tinha como objetivo formar pequenos vilarejos por meio, sobretudo, do agrupamento forçado de indígenas. Ainda segundo o autor, esses espaços também eram destinados a negros escravizados, brancos pobres e mestiços. No período colonial, os aldeamentos eram importantes instrumentos para garantir a segurança dos fazendeiros e o trabalho indígena nas lavouras e expansão territorial. Além disso, por meio desse dispositivo, buscava-se apaziguar os conflitos entre os colonos e os povos originários.

Neste artigo, trabalhamos com a concepção de que as nossas vozes, territórios, vestimentas, cantos e alimentos carregam tecnologias ancestrais de (re)existência aos movimentos coloniais de expropriação dos nossos corpo-território, saberes e memórias ancestrais. Vale destacar que, no Brasil, as ferramentas coloniais para o embranquecimento da população, o mito da democracia racial e a miscigenação produziram a invisibilização e/ou não reconhecimento das inúmeras estratégias de cuidado/cura do corpo-território produzidas pelas margens. O epistemicídio, conforme aponta Sueli Carneiro (2005), é um projeto forjado pela colonialidade, tem produzido o silenciamento das nossas vozes, dos nossos territórios e das nossas vidas.

Cabe aqui destacar que para a indígena mexicana, feminista comunitária e pesquisadora Delmy Hernández Cruz (2017), o termo corpo-território foi construído a partir das experiências e lutas do movimento de mulheres indígenas, de pesquisadoras ecofeministas e de mulheres do campo da América Latina e do Caribe, que têm construído ações conjuntas para a defesa dos seus corpos- territórios e de outros mundos possíveis. Para Hernández Cruz (2017, p. 43), o termo corpo-território é uma “epistemología latinoamericana y caribeña hecha por y desde mujeres de pueblos originarios que viven comunidad; es decir, la articulación cuerpo-territorio pone en el centro lo comunitario como forma de vida”.

Hernández Cruz (2017) afirma que a categoria corpo-território coloca-se como uma lente que conduz os nossos olhares para as lutas sociais e políticas, no território de Abya Yala, considerando os corpos como territórios vivos e históricos, onde habitam nossas feridas, processos de cura, saberes e memórias ancestrais. Ao mesmo tempo, esse conceito nos convoca a compreender os territórios como corpos sociais, que se articulam as redes individuais e comunitárias, onde seus corpos são territórios e seus territórios são corpos. Para essa perspectiva, não há abertura para uma relação de poder e dominação dos territórios ancestrais. Segundo Hernández Cruz (2020, p. 49),

El cuerpo de las mujeres, sugieren algunas feministas, es el primer lugar de lucha; sin embargo, surgen algunas interrogantes cuando los territorios son violentados por el paramilitarismo, o hay amenazas de que llegarán empresas extractivas a sus espacios. ¿Qué pasa con el cuerpo de las mujeres? Los territorios, antes eran considerados espacios de vida, se vuelven lugares hostiles para habitar cuando las alianzas patriarcales entre el capital y las relaciones machistas comunitarias dejan a las mujeres solas en la defensa del territorio. Si sostenemos que las mujeres han sido un referente en la defensa de los territorios, ¿cómo explicar su invisibilidad en los procesos de lucha?

Nesse compromisso ético-político com o corpo-território de mulheres indígenas e negras, buscamos refletir nesse artigo sobre as contribuições das escritas do Tehêy de Pescaria do Conhecimento da professora indígena Dona Liça Pataxoop para a tessitura de pesquisas comprometidas com os saberes, as memórias ancestrais e o corpo-território de mulheres indígenas e negras.

O Tehêy de Pescaria do Conhecimento de Dona Liça Pataxoop nos ensina a escrever com as nossas histórias e corpos-territórios. Suas narrativas nos convocam a resistir a partir dos saberes e memórias ancestrais. Memórias que, segundo bell hooks (2017), foram fragmentadas, quebradas, despedaçadas e desalojadas, mas que os desenhos-narrativas têm permitido (re)conhecer para a construção de solidariedades políticas e comunitárias. Sobre esse método de ensino, Dona Liça (2022, p. 149) afirma:

(...) são imagens que falam de tudo da minha vida, da minha cultura e da natureza. Têhêy é uma imagem que faço com lápis colorido em uma folha de papel que conta uma história e que fala de muitas coisas verdadeiras. É uma imagem que ensina sem a escrita das palavras, somente pela oralidade (…) nosso jeito de ensinar sempre foi assim, olhando, observando as imagens da vida e da natureza. Cada imagem tem uma história e cada história tem uma imagem. Para nós, as imagens são carregadas de sentidos e valores, onde podemos pescar conhecimentos. A imagem é uma forma de guardar a memória de um povo, guarda as atividades da vida, as festas, os trabalhos na terra, as caçadas, a nossa forma de relacionar com a natureza e nossa forma de viver no mundo.

O trabalho de (re)conhecer e resgatar as memórias e as histórias é chamado de memória histórica por Martin-Baró (1998), que é uma importante ferramenta da psicologia. Por meio da memória coletiva, é possível investigar aspectos do passado que possibilitam a defesa da vida e dos direitos de grupos subalternizados. Conhecer as memórias e histórias de um povo permite o avanço da consciência e contribui para a recuperação e valorização dos saberes tradicionais dos grupos e das classes marginalizadas. Segundo Eliane Potiguara (2022, p. 180), a oralidade “é base, conceito, princípio primordial ético e étnico que fundamenta a tradição e a escrita, a partir de valores linguísticos próprios de cada povo originário”.

Considerando o objetivo deste artigo, o trabalho foi organizado em duas partes. Na primeira parte apresentamos a professora indígena Dona Liça Pataxoop e o seu método de ensino Tehêy de Pescaria do Conhecimento. Na segunda parte, são anunciados, em diálogo com Tehêy, reflexões relativas às construção de uma pesquisa decolonial, feminista e comprometida com os saberes, memórias e o corpo-território das mulheres indígenas e negras.

Tehêy de Pescaria do Conhecimento da Dona Liça Pataxoop: encontros, ensinamentos e interpelações

Imagem 1- Valor do Tehêy:  Alegria dos cantos da natureza[3]

Fonte: Werymehe Alves Braz Pataxxop, 2019 

         O Tehêy de Pescaria do Conhecimento é um método de ensino desenvolvido pela professora e liderança indígena Dona Liça Pataxoop, que, atualmente, vive na aldeia de Muã Mimatxi, localizada em Itapecerica (Minas Gerais). As escritas narrativas partilhadas pelo Tehêy de Pescaria do Conhecimento são um convite para “Tehêyá” memórias, saberes e narrativas ancestrais do povo Pataxoop.

No cotidiano do povo Pataxó, o Tehêy, que é construído com corda de tucum e cipó[4], é utilizado como uma armadilha de pesca na beira do rio, principalmente, pelas mulheres e crianças. A professora Dona Liça, (re)significou esse instrumento para “pescar” formas, cores, memórias e narrativas que envolvem a história e o cotidiano da sua comunidade (Werymehe Braz Pataxxop, 2019). Compreendemos os Tehêys, como uma estratégia decolonial para romper com a linguagem do opressor e como uma reinvenção que anuncia as solidariedades políticas e afetivas, entre humanos e não humanos, para além dos arranjos propostos pela dominação colonial.

Dona Liça Pataxoop, autora dos Tehêys, nasceu na aldeia de Barra Velha (Bahia), onde viveu até os 16 anos. Sobre a sua infância nesse território de Mata Atlântica, Dona Liça (2022, p. 145) afirma:

Lá eu vivia coletando frutas da mata, dos campos, terreiando nas lagoas, córregos e beiradas dos rios e pegando mariscos do mangue com as mulheres mais velhas. Eu ajudava os parentes a plantar suas roças, coletar, fazer farinha e beiju. Aprendi muito com as histórias que as mulheres velhas contavam quando estávamos juntas. Ali foi a minha escola da vida que me preparou para ser uma mulher verdadeira e de respeito com minha gente e com a natureza.

Destacamos, aqui, o deslocamento forçado do povo Pataxoop para o sul da Bahia, Minas Gerais e São Paulo, que foi causado pelo “fogo de 51”[5] , no ano 1951, em Barra Velha (Bahia), e pelos conflitos gerados pela demarcação territorial na década 1980 (Mara Vanessa Dutra, 2012). Por esse motivo, em 1984 a liderança indígena Kanatyo Pataxoop, sua esposa dona Liça Pataxoop e a sua família mudaram-se para Terra Indígena Fazenda Guarani, localizada no município de Carmésia (MG) e, posteriormente, para Itapecerica (MG), onde iniciaram a construção da Aldeia de Muã Mimatxi.

A aldeia de Muã Mimatxi, que quer dizer “Moita de Mata”, é composta pela família de Dona Liça Pataxó e Kanatyo Pataxoop, esse território foi conquistado em 2006. Sobre o período, Dona Liça (2022, p. 147) relata:

Quando chegamos aqui, os Tokxãm nos receberam e entregaram Muã Mimatxi para nós, debaixo de um aguaceiro de chuva. Muã Mimatxi estava sofrida, a terra tinha muito capim e lixo, naquele dia fizemos um juramento de cuidar e fazer a cura da terra e de todos os seres que vivem aqui. A partir daquele dia, passamos a lutar pela vida e pela alegria da terra e de toda natureza de Muã Mimatxi. Passamos a fazer rituais para os yãmīxoop nos ajudarem fazer cura, fizemos brincadeiras para chamar a alegria e fomos trabalhando e dando descanso e força para a terra (...).

Na aldeia de Muã Mimatxi, Dona Liça é uma liderança das mulheres e professora na Escola Estadual Indígena de Muã Mimatxi, onde foi escolhida pela comunidade para ensinar sobre o “Uso do Território”. Em sua comunidade, ela tem atuado na luta pela garantia do acesso à educação específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue, além de ocupar espaços políticos para a defesa do direito aos serviços de saúde. Segundo Dona Liça (2022, p. 146),

(...) participo de reuniões fora da aldeia para defender o direito do meu povo. Gosto de defender as lutas da minha comunidade com muita coragem, assim aprendi com os mais velhos (...) Começamos a lutar por uma escola específica e diferenciada na aldeia; depois de pouco tempo de luta conquistamos a nossa escola desejada. Foi debaixo dos pés de mangueira que começamos a ensinar a nossas crianças; enfrentamos o frio e o calor, mas não perdemos a esperança e o sonho de um dia conseguir um prédio para nos proteger do frio e da chuva. Depois de um tempo de luta, conseguimos um pequeno prédio escolar, que tem até hoje. Assim que chegamos aqui, também começamos a lutar por uma equipe e um posto de saúde para nossa aldeia, eu ia em reuniões do DISEI, em Governador Valadares, e contava a história da minha aldeia e lutava pelo nosso direito até que conquistamos um posto e uma equipe de saúde para nossa aldeia. E assim continuamos a luta na defesa e na busca de melhoria de vida da nossa gente e da cura da nossa terra e de todos os seres de vida da nossa terra.

A autora dos Tehêys não foi alfabetizada na escrita ocidental. Segundo ela, sua formação foi realizada pela Mãe Terra e, a partir desse encontro, ela já elaborou mais de 100 Têheys de Pescaria do Conhecimento. Sobre essa metodologia, Dona Liça Pataxoop (2022, p. 147) afirma:

Desde o tempo ancestral, nós ensinamos e aprendemos pelo olhar, o escutar e tudo que fazemos na terra. O Têhêy é um pescador de conhecimento da vida Aprende por tudo o que você ouviu, pelo que você viu e fez na vida. O Têhêy é uma escrita do aprendizado que vem da tradição. É uma forma tradicional de ensinar para todos os tamanhos de gente. É uma fotografia da memória, da vida e da cultura que mostra a nossa forma de vida tradicional, as escritas e nossas marcas deixadas na terra. O Têhêy mostra o movimento da nossa gente, viajando pelos tempos e ciclos da natureza. O Têhêy viaja pela tradição, pela vida de hoje, desenha e planeja a vida futura. O Têhêy é o meu livro em que apresento a minha leitura da memória, a escrita do meu aprendizado na escola da vida em que me formei.

Na Escola Estadual Indígena de Muã Mimatxi, o Tehêy de Pescaria do Conhecimento é uma metodologia para o ensino dos saberes tradicionais do povo Pataxó. Segundo Siwê Alves Braz Pataxoop (2021), professor da Escola de Muã Mimatxi, o Tehêy é um instrumento para a alfabetização e a formação política das crianças e jovens, uma vez que, por meio dele, são ensinados não apenas cultura, história, ciência e tradição do seu povo, mas também tem formado novas lideranças comprometidas com a luta do povo Pataxoop.

O instrumento de ensino de Dona Liça, convida a/o leitora/leitor a tecer um “olhar afinado” para o corpo-território. Compreendemos que a experiência de “Tehêyá” é um posição ético-política que se opõe a universalização e fragmentação do ser, do saber e do corpo-território imposto pelas teorias eurocêntricas que permeiam o currículo escolar. Para Siwê (2021, p. 62), essa metodologia é um convite para “ir e voltar na nossa ancestralidade, é mostrar que nem tudo, a escrita dá conta de nos falar. Com a cultura da imagem, nos sentimos com mais capacidade de escrever”.

Nesta pesquisa, assumimos Tehêy de Pescaria do Conhecimento como uma pedagogia ancestral e contracolonial, pautada nos saberes tradicionais do povo Pataxoop. Ao escutar os ensinamentos de Dona Liça, lançamos, um convite para a abertura à experiência de “Tehêyá” para a reafirmação dos saberes, das memórias ancestrais e do corpo-território de mulheres indígenas e negras. Trata-se de um movimento contínuo de alterar os nossos sentidos, diante da realidade, para nos conduzir a perceber imagens que estão escritas na oralidade, nos saberes tradicionais e da ancestralidade.

Consideramos o ato de “Tehêyá” um letramento para a formação política e subjetiva para o corpo-território. Aqui o processo de escutar, partilhar e elaborar o Tehêy é assumido como um dispositivo para “afinar o nosso olhar”, para pensar alternativas que possam ligar os vários mundos que foram fragmentados pelo sistema moderno/colonial. Por meio desta metodologia é possível ligar o mundo indígena e não indígenas e diversas temporalidades (passado, presente e o futuro; o tempo da terra, o tempo das águas, o tempo da lua, o tempo dos humanos e não humanos, o tempo do sagrado e outros). Conforme aponta a pesquisadora e professora Alik Wunder (2022, p. 54),

(...)a modernidade imprimiu nas formas de pensar – nas ciências humanas, exatas e biológicas – a lógica da definição, nomeação, classificação, regidas por jogos, por vezes essencialistas e binários, que criam hierarquias. A escrita se faz sempre prioritária em relação às outras linguagens, as palavras são regidas pela razão e pela argumentação lógica. Há, nesse modo que aprendemos a pensar, pouco espaço para sentir e criar, e quase nenhum para a expressão de conhecimentos na forma de imagens, que geralmente servem ao texto para comprovar fatos e fenômenos. Sigo desejando deslocar os sentidos de imagem e escrita para embaralhar certezas sedimentadas e, quem sabe assim, trazer um vento de alegria criativa – uma voz, um canto – para os gestos de pensar e escrever.

Diante do apagamento colonial, que buscou silenciar, por meio do epistemicídio, as experiências e saberes das populações negras e indígenas em Abya Yala, propomos, reconhecemos Tehêy como um dispositivo metodológico, que nos ensina a construir um saber/fazer comprometido com a contranarrativas que (re)existem ao apagamento colonial dos saberes e território das mulheres indígenas e negras. Propomo-nos, ainda, a produzir fraturas nas práticas coloniais que cristalizam os “regimes seletivos de escuta” (Geni Núñez, 2019, p.7).

O convite do Tehêy de Pescaria do Conhecimento:  uma metodologia de ensino e de pesquisa comprometida com corpo-território de mulheres negras e indígenas

Aqui buscamos caminhar em um terreno interditado, que tem sido marcado por processos de silenciamentos produzidos pela historiografia oficial, que, ao buscar a consolidação de um território homogêneo para a unidade nacional brasileira, encobriu os saberes tradicionais, os cantos, os territórios e as redes produzidas pela população indígena e negra. Por meio do Tehêy de Pescaria do Conhecimento, buscamos registrar as vivências da “escrita de lugar nenhum, do não lugar”, que, conforme a intelectual negra e estadunidense Saidiya Haetman (2022, p. 11),

Quem se dedica a historicizar a multidão, as pessoas despossuídas, subalternas e escravizadas, se vê tendo de enfrentar o poder e a autoridade dos arquivos e os limites que eles estabelecem com relação aquilo que pode ser conhecido, à perspectiva de quem importa e a quem possui gravidade e a autoridade de agente histórico.

No processo de pesquisar, outra urgência se coloca: a delimitação e a partilha dos caminhos metodológicos que iremos trilhar para validar o que, segundo Glória Anzaldúa (2000) e Donna Haraway (2009), os olhares dos brancos não querem conhecer, não desejam aprender e que não foram registradas e/ou foram apagadas pela objetividade científica descorporificada e hegemônica.

Para pesquisar precisamos definir UM caminho para pensar e/ou compreender as memórias de cuidado partilhadas e vivenciadas por mulheres indígenas e negras, mas que foram separadas de nós mesmas e entre nós, preciso anunciar as trilhas que permitem acessar “aquele eu, aquele ‘outro’ e umas às outras (...) lugares de infância onde o exílio aconteceu, primeiro nas nossas famílias, com nossas mães, com nossos pais” (Anzaldúa, 2000, p. 232). Sentimos como mais uma expectativa violenta para validar nossas vozes! Parece mais uma ambiguidade e estratégias para que nossos corpos deixem de ecoar e se opor àquilo que a norma branca compreende como a historiografia oficial e/ou conhecimento científico. Mas, desta vez, eu/nós recusamos deixar que os aparatos da colonialidade do saber, poder e ser confundam os meus/nossos passos e, mais uma vez, neguem os saberes das minhas/nossas ancestrais!

Diante dos destrutivos instrumentos de silenciamento das sociedades ocidentais, teceremos metodologias de resistências! Caminhos de fuga para proteger nossos corpos e histórias. Escolha que buscamos tecer em um espaço-seguro junto com outras mulheres negras e indígenas, onde buscamos tecer outras metodologias que possam nos auxiliar a romper o silêncio produzido pelo trauma colonial (Grada Kilomba, 2019), caminhos metodológicos que possam transformar o silêncio em linguagem, em movimento e em redes afetivas e políticas, em caminhos para a cuidado do nosso corpo-território.

Como aponta Audre Lorde (2019, p. 2), as máscaras de silenciamento construídas pela colonialidade têm produzido o silêncio diante do “medo do desprezo, da censura, do julgamento, ou do reconhecimento, do desafio, do aniquilamento”. Para a autora, as mulheres negras temem a visibilidade que nos permite viver, acessar direitos e nomear a realidade. Todavia, enquanto permanecemos na margem, emudecidas, nossas irmãs e nossos iguais são violentados, nossos filhos são mortos e o nosso território expropriado pela mineração e pelo garimpo. Um fazer pesquisa a partir de uma perspectiva decolonial é aprender a trabalhar e a falar apesar do medo, posição ética-política anunciada por Audre Lorde (2019, p. 3):

Fomos educadas para respeitar mais o medo do que a nossa necessidade de linguagem e definição, mas se esperamos em silêncio que chegue a coragem, o peso do silêncio vai nos afogar. O fato de estarmos aqui e que eu esteja dizendo essas palavras, já é uma tentativa de quebrar o silêncio e estender uma ponte sobre nossas diferenças, porque não são as diferenças que nos imobilizam, mas o silêncio. E restam tantos silêncios para romper!

Diante desse contexto e da urgência de tecermos fraturas no modelo científico hegemônico, pescar conhecimento com Dona Liça Pataxoop, por meio do Tehêy, é um convite para mergulhar nas histórias, conhecimentos e espaços de desaprendizagens, nessa pescaria somos interpeladas a (re)conhecer a versão contra-hegemônica de histórias que chegaram até nós de forma distorcidas e que, muitas vezes, nem chegaram!

A experiência “Tehêyá” coloca-se como um fazer-saber interseccional, corporificado, localizado e autobiográfico.  Posições que reafirmam enquadramentos éticos e metodológicos comprometidos com as vozes das mulheres de Abya Yala e também questionam a objetividade defendida pelas ciências tradicionais. Desse modo, afirmamos que o Tehêy de Pescaria do Conhecimento em   diálogo com o feminismo negro e decolonial pode ser compreendido enquanto uma ferramenta para a construção de conhecimentos parciais, situado e corporificado.

Os feminismos têm nos convidado a construir lugares onde a produção dos saberes se faz de modo localizado e corporificado, a partir de movimento contínuo de reflexividade. Como aponta Donna Haraway (2009, p. 33-34), o fazer pesquisa a partir de uma perspectiva feminista busca compreender que:

Suas imagens não são produtos da escapatória ou da transcendência de limites, isto é, visões de cima, mas sim a junção de visões parciais e de vozes vacilantes numa posição coletiva de sujeito que promete uma visão de meios de corporificação finita continuada, de viver dentro de limites e contradições, isto é, visões desde algum lugar.

No que diz respeito a autoetnografia, de acordo Sally Denshire (2014), citada por Maria Simone Euclides e Joselina da Silva (2019), essa metodologia possibilita a construção de espaços comunitários de resistência, onde as narrativas da singularidade não são encarceradas pelo medo e pelas torturas perpetradas pelas “mascaras de silenciamento” do colonialismo. Desse modo, “a autoetnografia situa-se num espaço fronteiriço e intermediário, entre paixão e intelecto, análise e subjetividade, etnografia e autobiografia, além de arte e vida” (Maria Simone Euclides e Joselina Silva, 2019, p. 35).

Nesta pesquisa, consideramos o Tehêy de Pescaria do Conhecimento uma autoetnografia, tecida a partir dos desenhos narrativas que contam, por meio de imagens coloridas, memórias do passado e do presente, sobre a vida da/na terra, as histórias do povo Pataxoop e da ancestralidade. Conforme Dona Liça Pataxoop (2022, p. 150),

O Têhêy ensina com a arte da vida que liga tudo entre gente e natureza. Ele apresenta a alegria das cores das frutas, dos balanços das plantas, das sementes, das águas e dos peixes e de toda a natureza. Com o Têhêy ensinamos com os conhecimentos dos velhos, as palavras e os valores que vêm da terra e da tradição. A gente aprende com a liberdade em todo lugar e espaço que a gente vive. A gente ensina com a inspiração de ser livre, de uma escola que vive a vida da comunidade. A minha formação para ensinar com o Têhêy foi com as famílias, os mais velhos, e fazendo na prática as atividades do dia a dia com a natureza. Tudo o que se fazia tinha um valor importante pra vida. Essa pedagogia de ensinar pelo Têhêy é verdadeira porque se aprende com as histórias, o conhecimento tradicional do nosso povo, para garantir o direito a ter uma escola específica e diferenciada, com a nossa própria forma de ensinar e aprender, para a nossa cultura, o nosso conhecimento e o pensamento verdadeiro, para que não seja perdido e esquecido.

O Tehêy produz rasuras nas teorias e metodologias produzidas no espaço acadêmico. Dona Liça, ao trazer os desenhos narrativas como ferramenta para contar a sua própria história e escrever a sua versão dos saberes tradicionais do povo Pataxoop, produz rupturas com a escrita ocidental, que, segundo Linda Smitt (2018, p. 42), “é considerada a marca de uma civilização superior, e é com base nesse conceito que outras sociedades têm sido julgadas como incapazes de pensar crítica e objetivamente ou como distanciadas das ideias e das emoções”.

Articulando a metodologia de Dona Liça com pensamento de Linda Smitt (2018), percebemos que o Tehêy possibilita o resgate da história, das linguagens e dos fundamentos epistemológicos do seu povo. Além disso, esse método de ensino, permite “priorizar e reconciliar o que é realmente importante a respeito do passado com o que é realmente importante no presente” (Linda Smitt, p.54).

Ainda segundo a autora, as experiências racistas, por serem extremamente hediondas, não são entendidas de modo cognitivo e/ou atribuída sentido. Por isso, “ela permanece não processada como “não conhecimento (...), porém sentida no corpo”. A agonia do racismo é, portanto expressa através das sensações corporais, expelida para o exterior e inscrita no corpo‖ (Grada Kilomba, 2019, p. 162). Portanto, a linguagem do trauma é manifestada de forma física, gráfica e visual. Diante dos traumas coloniais e das estratégias de resistências tecidos por Dona Liça Pataxoop o Tehêy é assumido como um método autoetnográfico e contracolonial que possibilita, a partir dos conhecimentos de uma mulher indígena, escutar as marcas do trauma colonial e (re)conhecer narrativas maneira afetiva, política, crítica, e coletiva.

Liça Pataxoop (2022, p. 150) afirma:

Somos diferentes, temos que ser respeitados, queremos valorizar o que é nosso, porque o que fazemos na terra com o nosso conhecimento, ajudamos a natureza para todos continuarem vivendo aqui na terra. O Têhêy é tudo da vida, é mais que um livro. É pra guardar o conhecimento que eu vivi, aprendi através da fala, do olhar e da prática (...) O Têhêy é um inspirador de pescaria de conhecimento, é um divertimento de vida, por meio do qual se ensina e se aprende com alegria. Com o Têhêy, ensino a todos os tamanhos de gente e de todas as idades. Para cada idade de criança o Têhêy é apresentado de um jeito, com conversa e história que chama e atrai a criança. Com uma conversa coletiva e construtiva na pesca do conhecimento. Com um Têhêy, a criança pode contar uma história da sua vida, da sua família, da terra, da aldeia e do seu cotidiano.

Considerações finais

Diante da urgência de romper com os “regimes seletivos de escuta” acerca do saber-fazer produzido pelas mulheres que habitam as margem de AbyaYala, este artigo buscou refletir sobre as contribuições das escritas do Tehêy de Pescaria do Conhecimento da professora indígena Dona Liça Pataxoop para a tessitura de pesquisas comprometidas com os saberes, as memórias ancestrais e o corpo-território de mulheres indígenas e negras.

O método de ensino da professora Dona Liça Pataxoop são imagens que narram vivências e saberes da cultura do seu povo. Nessa escrita é possível, por meio de traços e cores, conhecer os saberes tradicionais, as memórias e o modo como o povo Pataxoop relacionam-se com a natureza. Desse modo, “Tehêyá” é um convite, lançado por Dona Liça, para tecer um “olhar afinado” para o corpo-território de mulheres negras e indígenas, traços que nos permite compartilhar as memórias coletivas do trauma colonial, as histórias de resistências e o desejo de construir outros mundos e sensibilidades.

Nesse sentido, o método de ensino da professora Dona Liça Pataxoop, mostra-se como uma importante ferramenta para a construção de pesquisas interseccionais, corporificadas, localizadas e autobiográficas. Em nossas pesquisas, os desenhos narrativas colocam-se como uma estratégia decolonial e contra-hegemônica para que mulheres negras e indígenas possam (re)conhecer o seu corpo-território.  

Portanto, ao assumir o Tehêy de Pescaria do Conhecimento como uma metodologia de ruptura com a escrita ocidental e os aparatos da colonialidade do saber, poder e ser que marcam o processo de produção do conhecimento, buscamos reafirmar a potencialidade e o nosso compromisso ético-politico com as contranarrativas que (re)existem ao apagamento colonial. Além disso, reafirmamos a necessidade de interpelar os espaços que consideram as teorias e as metodologias europeias como único modo de construir conhecimento legítimo e científico.

Serie Pueblos, acrílico.Rosana Moreno

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Notas


[1] Segundo relato de Dona Liça o Tehêy “Valor do Tehêy a terra está se alimentando apresenta o seguinte conhecimento: “É um valor de alimentação, a gente que tem que ensinar às crianças, como eu falo que nós trabalhamos pelos tempos porque a terra ela se alimenta através das águas da chuva, do sol, do vento, dos raios e do trovão. Todo mundo se alimenta nesse tempo, e aqui nesse tempo a terra está mais verde, as plantas estão todas verdes e as frutas estão, todas amadurecidas, as jabuticabas, as sementes de artesanato, e quando chega, esse tempo a terra toda se alimenta através do outro tempo, das folhas que caíram no chão, esse é o tempo da vida, é um tempo que nasce, cresce, amadurece, fortalece, engrossa. As plantas estão alimentadas, os animais estão alimentados através dos milhos que a gente planta e a gente também está alimentando através da fartura dos milhos que plantamos, os rios estão alimentados pelas águas novas, os paturis e o martim pescador se alimentam com muitos peixes nos rios, e a gente vê que é um outro tempo, que as águas estão batendo na terra, é um tempo que ela está alimentada pela nuvem, a queda da terra do céu alimenta a terra de baixo, onde a gente vê nascer e crescer as sementes que caíram no chão, está tudo nascendo. Os bichos estão todos alegres, os passarinhos batendo asa. Esse valor fala mais do alimento da terra, e as crianças precisam saber que nós nos alimentamos, nós temos nossos alimentos, e a terra tem o seu próprio alimento que são as águas e as sementes, o ensino vai longe e nós indígenas sentimos e vemos a terra sadia e alimentada, e a gente se sente sadio e alimentado, as madeiras estão todas coloridas e fortalecidas, os compadres anjiqueiros estão todos fortalecidos. Esse é o tempo que ela está alimentada”, ver Werymehe Alves Braz Pataxxop (2019).

[2] A língua do povo Kuna, que habita a costa caribenha do Panamá, Abya Yala pode ser entendida como “Terra madura”, nomeação que e que se coloca em oposição à expressão América. Ao longo da escrita desse texto, utilizamos o termo Abya Yala como um compromisso ético político de tecer fraturas as nomeações coloniais que marcam os territórios e as línguas dos povos que habitam o sul global. Ver Carlos Walter Porto-Gonçalves (2021).

[3] Segundo relato de Dona Liça o Tehêy que aborda o “Valor do Tehêy:  Alegria dos cantos da natureza” apresenta a seguinte narrativa: “A gente sente a alegria de ver o cantar da natureza, e a gente ensina as crianças a ouvirem uma música do cantar dos animais. No Tehêy tem os pássaros passando, os tucanos que são os pássaros que ouvimos o ano todo, quando ouvimos os cantos dos animais a gente se sente alegre, a gente se sente feliz de ouvir porque tem os cantos dos tucanos que é muito bonito, o cantar de um grupo de periquitos, o canto de um pombo, o canto de um caburé, o canto de uma seriema, o canto das cigarras e outros que passam por aqui cantando, os flauteiros, os quero-quero, e eu me sinto alegre, e nós ensinamos as crianças a se sentirem alegres. E eu mesma nasci no território Barra Velha, que tinha muitos pássaros que passavam cantando, muitos grupos de papagaios, de macacos, de tucanos, perdizes, e aqui também tem juruti, saracura, quero-quero. Eu me sinto alegre de ver eles cantando, lembro do meu tempo de criança, e a gente fala para as crianças que a gente escutava muito esses cantos e eu falo que fico muito alegre, e para eles se sentirem alegres também quando eles ouvirem o cantos dos passarinhos, os gritos dos corujão, e tem também os cantos dos animais dos quintais como os gansos, as angolas, cantos dos galos, os piados dos pintos e isso faz a gente sentir feliz porque no lugar onde eu moro, e no lugar que eu nasci tinha muito e Muã Mimatxi traz a alegria desses cantos dos animais pra mim, e eu me sinto feliz e alegre. E a gente ensina para as crianças ouvirem, porque passa batido pelo povo, eles estão tão iludidos pelos outros cantos, os barulhos dos brancos e não ouvem a natureza. É para incentivar mesmo as crianças crescendo e se embelezando pela natureza. Ver Werymehe Alves Braz Pataxxop (2019).

[4] O tucum é uma palmeiras da região amazônica que possui uma grande importância para os povos indígenas. Por meio dessa planta é possível confeccionar redes, linhas para o anzol, a corda para amarrar a canoa, além de objetos para adorno, tal como: como chapéu, bolsas e saias. Já o cipó é uma matéria prima tirada da natureza, geralmente utilizado na produção de objetos artesanais. Ver Regina Abreu (2012).

[5] No ano de 1951 ocorreu um massacre na Terra Indígena Pataxoop, na cidade de Barra Velha (Bahia), episódio nomeado como “fogo de 51”. Esse fato levou a morte de dezenas de indígenas pelas forças conjugadas da polícia e do exército. Para o povo Pataxó o fogo de 51 gerou marcas profundas na história de homens, mulheres e crianças, sendo narrada ainda hoje pelas/os idosos das aldeias.

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