DOI: http://dx.doi.org/10.19137/circe-2019-230104
ARTÍCULOS
Da ἀγέλη de Esparta ao γυμνάσιον de Atenas. A educação do παῖς sob os cuidados da πόλις
De la ἀγέλη de Esparta al γυμνάσιον de Atenas. La educación del παῖς bajo los cuidados de la πόλις
From the ἀγέλη of Sparta to the γυμνάσιον of Athens. The education of the παῖς under the care of the πόλις
Miguel Spinelli*
[Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil]
[migspinelli@yahoo.com.br]
Resumo: A principal questão em análise neste estudo é a educação concebida por Licurgo como uma tarefa do Estado. Praticada em Creta, na qual Licurgo fora educado, trazida para Esparta, dali se espraiou por toda a civilidade grega. A proposta de Licurgo, sob diferentes práticas e interpretações, inspirou não só as legislaturas como também a discussão filosófica subsequente. A República de Platão, aqui concebida como um projeto de legislatura (politeía) e de educação filosófica, é analisada em termos de uma síntese amadurecida da tarefa educadora do Estado.
Palavras chave: Agéle; Ginásio; Educação; Paîs; Pólis
Resumen: La principal cuestión de análisis en este estudio es la educación concebida por Licurgo como una tarea del Estado. Practicada en Creta, en la que Licurgo había sido educado, fue llevada a Esparta, desde donde se extendió a toda la civilización griega. La propuesta de Licurgo, bajo diferentes prácticas e interpretaciones, inspiró no solo las legislaturas, sino también la discusión filosófica subsiguiente. La República de Platón, aquí concebida como un proyecto de legislatura (politeía) y de educación filosófica, es evaluada en términos de una síntesis madura de la tarea educadora del Estado.
Palabras clave: Agéle; Gimnasio; Educación; Paîs; Pólis
Abstract: The main question of analysis in this study is the education conceived by Licurgo as a task of the State. Practiced in Crete, in which Lycurgus had been educated, it was taken to Sparta, from where it spread to all Greek civilization. The proposal of Lycurgus, under different practices and interpretations, inspired not only the legislatures, but also the subsequent philosophical discussion. The Republic of Plato, here conceived as a project of legislature (politeía) and of philosophical education, is evaluated in terms of a mature synthesis of the educational task of the State.
Keywords: Agéle; Gymnasium; Education; Paîs; Pólis
Este artigo contém quatro
blocos de observações
que se complementam
entre si e que se concluem
uma pela outra resultando
em um conjunto aberto
a novas e outras possibilidades
de investigação e de estudo. O
artigo, no seu todo, se constitui em um
só bloco de considerações introdutórias
a respeito de como a ἀγέλη lacedemônia veio a promover o γυμνάσιον de
Atenas, e como ambos fomentaram a
educação do παιδός como uma obrigação
do Estado. Trata-se, com efeito, de
uma breve análise histórica construída
dentro de um ponto de vista filosófico
estimulado a partir prioritariamente
dos escritos de Platão e da importância
dada à ginástica como exercício dedicado
aos cuidados do corpo e da mente.
O fundamental da análise não consiste
na defesa de uma determinada tese, e
sim em apenas percorrer, de um ponto
de vista histórico e reflexivo, o seguinte
roteiro: de como a escolaridade veio
a ser concebida entre os gregos como
uma tarefa que implica a responsabilidade
do Estado mesclada à dedicação
dos pais ou da família.
1.- Foi a partir de Creta, do que lá se
denominava de ἀγέλη (agrupamento,
rebanho, multidão) que Licurgo concebeu
o que a posteridade grega denominou
de ginásio. Platão, na República (V. 452 c8-9), fez o seguinte registro: “os
primeiros a adotar a prática dos exercícios
nus (τῶν γυμνασίων) foram os
cretenses, depois os lacedemônios”. Tucídides
(460-400 a.C.), contemporâneo,
mas um pouco mais idoso que Platão
(428-348 a.C.) registrou na obra Guerra
do Peloponeso (I. 6. 5) que foram os
lacedemônios “os primeiros a se desnudar
(ἐγυμνώθησάν), e, além de se
mostrar nu em público, a se untar, olear
o corpo, para o exercício da ginástica
(γυμνάζεσθαι = exercitar-se nu)”1.
Em Creta, a ἀγέλη tinha essencialmente
por função preparar
o jovem tendo em vista o conhecimento
teórico e o exercício prático
das funções militares, mas também
das disciplinas relativas às letras que
facultavam o bom desempenho da
civilidade. Por isso o jovem vinha
ali a ser recluso a partir dos 17 até
a “diplomação” na cidadania aos 21
anos. Levada para Esparta, a ἀγέλη foi concebida como lugar de reclusão
das crianças a partir dos sete anos: da
idade definida por Licurgo como “da
razão”. O conceito do qual se valeu
foi este: recluir para educar, com o
que pressupunha retirar a criança de
uma interferência excessiva dos usos
e costumes, bem como dos hábitos e
valores exclusivamente familiares.
A educação da primeira infância,
até os sete anos, ficava restrita ao recinto
familiar. Era nele que se começava
a sorver princípios e valores frutificados
e repassados de geração em
geração: do pai para o filho e para o
neto, e assim sucessivamente sob um
contínuo processo de geminação e de
reciclagem. Tratava-se de uma luta
sem fim que pedia para, sempre de
novo, de geração em geração, renascer
e recomeçar. O inusitado entre os
espartanos, dado que não havia um
instituto de casamento em termos estritamente
vinculantes de um homem
com uma mulher (afinal, os homens
viviam mais na caserna que em casa),
a criação dos filhos era inicial e preferencialmente
feita no ambiente familiar da mãe (sobre a qual não recaía
dúvida quanto à maternidade) e dos
avós disponíveis (mais a avó que o avô,
visto que, muitos deles pereceram nas
guerras). Daí que, na primeira infância,
a criança sorvia os usos e costumes
espartanos dentro primordialmente
da família materna, e não paterna, mas
sob vigilância dos referidos avós, aos
quais a civilidade espartana concedia
consideração e respeito.
Na ἀγέλη, o παιδός, submetido a
rigorosa disciplina, ficava recluso sob
a tutela do Estado com a finalidade
de fazer duas coisas como se fossem
apenas uma: brincar (παίζω) e estudar
(συσχολάζειν). A ideia era esta:
toda a educação do παιδός sob o título
de uma παιδεία, de uma exercitação
educadora, haveria igualmente
de ser uma παιδιά, isto é, uma brincadeira,
um jogo, um divertimento.
Essa, efetivamente, foi uma ideia que
se expandiu por toda a Grécia, e que,
explicitamente, na medida em que
foi concebida sob os termos de uma
παιδός / -ἐραστία (παιδεραστία =
de um amor cuidadoso dedicado à
infância e à adolescência2) passou
bem ao longe do que hoje (tema a ser
estudado em outra ocasião) viemos
a compreender por pederastia: por
uma exploração sensual e sexual criminosa
da infância e da adolescência.
Quanto à designação grega de ginásio,
esse foi um nome derivado do
substantivo neutro γυμνάσιον que
evocava entre os gregos pelo menos
três designações:
a) o exercitar-se nu nas atividades físicas;
b) o estar ou andar desarmado;
c) o recinto onde se praticava nu e desarmado os exercícios.
Tratava-se, nos dois primeiros casos,
de duas condições que se constituíam
em obrigação regimental: a
primeira para a prática dos exercícios;
a segunda para os que se dispunham a
entrar e frequentar o recinto do ginásio.
Eram, pois, duas condições que se
expressavam em um só termo, no adjetivo
γυμνός: literalmente, não coberto
e desprovido, no sentido de não portador,
de armas ou, simplesmente, não
vestido de amaduras3. Daí que o verbo
γυμνάζω designava tanto a ação de
desnudar-se quanto a de exercitar-se.
A obrigação de se colocar nu nos
ginásios foi imposta em razão das lutas
corporais por lá muito utilizadas
como forma de exercício. As lutas
eram feitas de corpo nu (liso), e, além
disso, untado de óleo (azeitado): condição
que nos leva imediatamente a
pensar no quanto era escorregadio,
e que, por sua vez, exigia muita força
e habilidade aplicadas aos braços e às
pernas. A luta era fundamentalmente
travada valendo-se das palmas das
mãos (παλάμη), de cuja modalidade
derivou o outro nome também aplicado
aos ginásios: o de παλαίστρα (palestra)4.
A luta era travada (digamos, aproximadamente)
assim: os lutadores, no
confronto um do outro, espalmavam
mão à mão, as entrelaçavam com os
dedos, e assim, manipulandose (πα-
λαμάομαι), ou seja, amparandose
reciprocamente com o trabalho das
mãos, se aplicavam golpes com a força
dos braços e das pernas. [O substantivo
feminino πάλη designava a
luta atlética e o combate; παλάμη,
a palma da mão, o golpe de mão, o
trabalho manual]. Daí, por um lado,
que as lutas eram sempre realizadas
em dupla, fato que levava os jovens,
como Platão fez constar no Sofista (218 b) a ter o seu companheiro ou
parceiro habitual da ginástica (συγγυμναστήν); por outro, foi, então, da
referida modalidade comum de luta
que adveio, a par do nome γυμνάσιον, o de παλαίστρα, termo com o
qual igualmente substantivaram o
chamado ginásio.
No geral, as edificações eram
construções ao redor cobertas, que
comportavam no centro um grande
retângulo descoberto, justamente
a παλαίστρα: uma quadra, do tipo
como denominamos hoje de campo
de futebol, cercada, entretanto, por
edificações e não propriamente por
arquibancadas. Era, então, na παλαίστρα que os “ginastas” se exercitavam
nas mais diversas modalidades
de luta: na arte do pugilato, na da esgrima,
nas corridas e nas caminhadas
atléticas etc. Não só se exercitavam,
como também realizavam ali competições e certames públicos relativos
a todos os tipos de modalidades ou
exercícios de ginástica. Cabe, aliás,
aqui apenas mencionar a παλαίστρα como sendo o campo no qual Aristóteles
(no Liceu) encontrava ocasião e
espaço [não esqueçamos que lá era
tudo muito disciplinado e fiscalizado
quanto ao uso dos recintos] para suas
caminhadas com os discípulos, a fim
de, com eles, promover suas confabulações
filosóficas.
Os grandes ginásios eram construídos
e mantidos pelo Estado. As
edificações, em geral, eram extensas
e amplas. Muitas delas ocupavam os
grandes espaços destinados aos parques
e jardins, nos quais, inclusive, se
localizavam os templos destinados à
louvação dos deuses, aos sacrifícios e
às libações. Era em razão da chuva que
as edificações eram dotadas, em geral,
de suntuosos alpendres cobertos, amparados
por grandes colunatas.
Os recintos fechados das edificações
(das ginasiais) comportavam
muitas outras atividades e funções
além da ginástica:
a) Oferecer, no cotidiano, a escolaridade básica concernente às disciplinas da ἐγκύκλιος παιδεία5. Tratava-se de uma escolaridade requerida enquanto ensino fundamental necessário e indispensável para o exercício da vida cívica: aprender a ler, a escrever e a contar (em favor da οἶκος familiar), e, além disso, introduzir-sena gramática e na poética, e, enfim, sorver os princípios elementares do saber e da cultura;
b) Exercitar, como já visto, a ginástica preparatória tendo em vista os jogos olímpicos, as festividades6 e a guerra. Aqui, entretanto, o que mais importa destacar diz respeito ao fato de que a função dos Ginásios ou Palestras consistia em fundamentalmente preparar os atletas e não o soldado. Ocorre que a grande parte dos soldados era composta de mercenários, vindos particularmente da pobreza, e era preparada em campos de exercícios de guerra específicos. Os jovens da pobreza buscavam na “profissão” de soldado e de guerreiro um modo de “ganhar a vida”, sendo que, muitos, querendo ganhar, findavam perdendo. O preparo ou a “educação” para a guerra priorizava a habilidade, o vigor e a destreza na defesa corporal e no manuseio das armas, de modo que, em última instância, era uma capacitação que estimulava bem mais a brutalidade que a humanidade;
c) Outra função ampla dos ginásios consistia em oportunizar o revigoramento e a manutenção do bem-estar físico e mental dos jovens e de todos os cidadãos: não só os da elite com tempo livre, mas também os assalariados no tempo livre7. Bem por isso que cabia aosliberginásios facultar um ambiente lúdico para o lazer em geral, e, além disso, para a discussão política e o debate de opiniões, razão pela qual eles vinham a se constituir em lugares privilegiados para o encontro dos sofistas, dos filósofos e dos amantes da literatura, da poesia e das artes em geral.
Daí a contínua efervescência humana
naquele ambiente, sobretudo,
ao amanhecer e ao entardecer.
Durante o dia, no horário em que a
πόλις estava absorta nos ofícios, os
ginásios eram tomados pelos παιδός (crianças, adolescentes e jovens) na
escolaridade e nas práticas relativas
aos exercícios da ginástica oferecidos
como obrigatórios: mesmo que árduos,
eram, entretanto, oferecidos sob o
estímulo do lazer. Os ginásios, enfim,
vieram a se constituir em ambiente
privilegiado do passatempo e do lazer
juvenil. Os jovens findaram por
viver bem mais tempo nos ginásios
que na Ágora, e pela seguinte razão
(ao modo como zombou Aristófanes,
nas As nuvens 1002): lá no ginásio, os
jovens podiam reluzir (λιπαρός = engordurado,
brilhante), ou seja, exibir
todo o seu brilho, e, enfim, “florescer
na formosura (εὐανθής)”!
No que concerne à atividade da
ginástica propriamente dita, ela não se
restringia apenas aos exercícios práticos,
pois comportava do mesmo modo
(tal como registrou Platão, no Górgias 450 a) instruções teóricas: “A ginástica
também oferecia o logos sobre a boa ea má constituição do corpo”. Eis os termos
com os quais Platão, na República (VII. 521 e3-5) a definiu: “A ginástica
se ocupa com o que nasce e perece,
pois presta assistência (ἐπιστατεῖ)
ao desenvolvimento e ao declínio do
corpo”. Trata-se de uma definição que
pressupõe a mentalidade, difusa entre
os gregos, segundo a qual o corpo humano
se constituía num microcosmos.
Daí a razão pela qual o παιδοτρίβης (o
responsável pela ginástica) não atuava
sozinho, mas associado ao médico (ao ἰατῆρ) e ao gastrônomo (ao γαστρόφιλος) ou cozinheiro (ὀψοποιός)8. Toda
essa vinculação se explica pela própria
semântica do παιδοτρίβης, cujo termo,
literalmente, designava o mestre que
orienta o παιδός na ação de gastar, de
consumir (τριβή) a energia acumulada.
Foram igualmente os gimnasiarcas
e os pedótribas que, concretamente,
promoveram entre os jovens
o cuidado do corpo como forma de
cumprir a contento, sem prejuízos, as
obrigações cívicas. “Uma compleição
atlética (como sentenciou Aristóteles)
não é vantajosa para os objetivos
gerais da vida cívica nem para a
saúde nem para a procriação”9. Era
função, pois, dos mestres da ginástica
orientar (submeter a normas) os
exercícios concernentes ao preparo
das competições olímpicas, dos certames
festivos e das guerras. A função
primordial do παιδοτρίβης, aos quais se associavam os gimnasiarcas
(os mestres propriamente ditos da
ginástica) pode ser sintetizada neste
pressuposto: em como promover
transgressões, ou seja, o excesso de
gastos de força ou vigor, a fim de promover
(adquirir), sem perda, ainda
mais força e vigor. Em outros termos:
como transgredir normas mediante
normas, como equilibrar gastos (perdas)
sob uma medida justa de reposições
(aquisições). Quer dizer: na
mesma medida do gasto, se impunha
a consequente necessidade de repor a
energia consumida.
Daí o consórcio, que Platão, na
República (IV. 441 e9), denominou
de σύμφωνα (harmonia, sinfonia)
entre o gimnasiarca, o ἰατρός e o
γαστρόφιλος10, que levaram ao operaras
três disciplinas juntas: a ginástica,
a gastronomia e a medicina11.
Platão, na República, concede aos pitagóricos
esta vinculação, dada como
um pressuposto ancestral da doutrina
que concebia o conceito de saúde nos
termos de um estado de equilíbrio (de
“cadência e harmonia” ou de “harmonia
e ritmo”12) entre o vigor físico e
o mental. Na mesma República (III.
406 a7-8), Platão atribui a um tal de
Heródico, um professor de ginástica
que vivia sempre adoentado, ter, naprática, tirado grande proveito do referido
consórcio, a ponto de, por ele,
ter garantido para si uma vida saudável
e longeva.
2.- Foi Licurgo, o precursor das legislaturas
gregas, que fez a ginástica
entrar na pauta da πολιτεία como
uma atividade primordial da educação
infantil. Ele foi, entre os legisladores,
o primeiro dos gregos a conceber
a saúde do corpo sob o conceito de
corpo exercitado (bem cultivado) e
bem alimentado como condição de se
promover um corpo “belo e robusto”:
fonte de prosperidade e de bem-estar
quer para o cidadão em particular
quer para o todo da πόλις13. Foi assim,
sob esse conceito, que ele concebeu a
ginástica como uma obrigação tanto
para os meninos quanto para as meninas,
não só em vista de um benefício
próprio, mas também enquanto genitores,
a fim de que, na idade apropriada,
viessem a gerar (reproduzir) filhos
fortes, vigorosos e saudáveis.
“Convicto de que a educação da
infância era a melhor e a mais importante
obra de um legislador, Licurgo
então se ocupou, antes de tudo, em
regrar as relações conjugais e os nascimentos
(τοὺς γάμους καὶ τὰς γε-
νέσεις)” (Plutarco, Licurgo XXI. 14.
1). O princípio sobre o qual se apoiou
foi este: que o principal cuidado humano
deve recair sobre o cultivo do
corpo com especial cuidado para a
alimentação e o exercício. Nesse ponto,
Crítias, o primo segundo de Platão e um dos trinta tiranos que governou
Atenas, registrou igualmente que Licurgo
iniciou a Constituição espartana
com o seguinte questionamento:
o que é que possibilita ao humano
“gerar o melhor corpo (βέλτιστος τὸ
σῶμα) e o mais forte?”. Na sequência,
respondeu que os genitores careciam
de duas condições indispensáveis:
que ambos, tendo em vista a procriação,
fortificassem o próprio corpo, e
que, para isso, equilibrassem o exercício
da ginástica com uma alimentação
substanciosa14.
Além de Crítias, eis, efetivamente,
como Xenofonte descreveu o que
consta no preâmbulo da Constituição
espartana (I. 3-4) de Licurgo:
Comecemos sobre a procriação, que é uma questão primordial, e que muitos povos não se ocupam, e mesmo os que aparentam dar às jovens destinadas a procriar uma boa educação, são por vários povos tratadas sob um regime alimentar racionado e sem condimento. O vinho, por alguns deles, é interditado, por outros, admitido, mas bem diluído em água. Alguns helenos também acreditam ser conveniente para as jovens, a exemplo dos artesãos que vivam uma vida sedentária, inativa, apenas fiando a lã. Ora, como esperar de jovens submetidas a um tal regime a geração de uma valiosa linhagem? Foi então pensando assim, que Licurgo (...) determinou que o corpo feminino se exercitasse não menos que o masculino (...) e que entre elas fossem organizadas, a exemplo dos homens, competições de corridas e de lutas (...)
A partir de Licurgo, foram basicamente
os sofistas, não sem o contributo
dos filósofos, em particular
dos pitagóricos, que espraiaram pelas
πόλεις gregas o estímulo entre os jovens
no sentido de fortificar o corpo
em benefício de si mesmos e da coletividade.
Eles disseminaram igualmente
pela Grécia o pressuposto da
legislatura de Licurgo e da doutrina
pitagórica segundo o qual é da saúde
do corpo que se retira o sustento
da saúde da alma (da mente), sem o
que, enfim, corpo e alma não se qualificam
reciprocamente. Na senda dos
sofistas, os gimnasiarcas e os pedótribas,
muitos deles sofistas que fizeram
da ginástica profissão, foram os que,
concretamente, promoveram entre
os jovens o cuidado do corpo como
forma de cumprir a contento todas
as obrigações cívicas que a ginástica
presumia. Veio, nesse sentido, a ser
função dos gimnasiarcas e dos pedótribas
orientar (submeter a normas)
os exercícios concernentes ao cotidiano
requisitado quer pela escolaridade
quer pelo preparo das competições
olímpicas, dos certames festivos e das
guerras.
Remonta a Pitágoras o ensinamento
segundo o qual a alma (entenda-
se a sede da inteligência, da vontade
e das emoções) só se sobrepõe ao
corpo na medida em que lhe for concedido
o governo, ou seja, que nela,
mediante instrução, se promova o uso
da razão (da qual, como dito, a alma
é a sede), por cujo uso venha a ser
possível estimular a aptidão humana
para o discernimento e para o exercício
do juízo, e, com eles, a sensatez e a razoabilidade. Foram os pitagóricos
que, com esse modo de pensar, deram
um novo alento à sofística enquanto
movimento de instrução e de educação
(nos termos de um professorado
perambulante) que se espalhou por
todas as πόλεις e povoados (δῆμοι) de toda a Grécia. “Deram alento” em
razão de que, como sentenciou Platão,
no Protágoras (316 d), “a arte do
sofista é muito antiga”.
Foram, pois, dois amplos movimentos
educadores que, no interior
do mundo grego, se alastraram por
todas as πόλεις: um, como já dito, o
movimento sofista que tomou direção
e sustento no magistério filosófico
de Pitágoras; outro, o que encontrou
orientação e alento na legislatura
de Licurgo, sob a qual veio a se erigir
a πολιτεία de Sólon e a de Clístenes.
Dentro da legislatura de Licurgo o
que mais sobressaiu foi a importância
que ele atribuiu à educação. A ressonância
dessa prioridade foi tanta, a
ponto de, no decurso histórico, como
sentenciou Platão, no Protágoras (343
b), ter levado todos os sete sábios da
Grécia a ser “amantes e discípulos
(ἐρασταὶ καὶ μαθηταί) da educação
lacedemônia”.
A ginástica tomou conta do cotidiano
da vida grega, e os ginásios
vieram a se constituir no lugar privilegiado
de convivência humana e
cívica. O que Platão, por exemplo,
relatou no Protágoras (326 b-c), como
palavras do sofista Protágoras, assinala
bem a importância que a ginástica
exerceu na educação do παιδός,
e, consequentemente, da cidadania
grega:
Os pais entregam seus filhos ao mestre de ginástica (παιδοτρίβου), a fim de que eles possam ter um corpo robusto à serviço de uma mente viril, e, uma vez requisitados, não venham a revelar fraqueza ou covardia na guerra e em situações semelhantes. Mais que os outros, são, com efeito, os filhos dos ricos que levam vantagem, uma vez que, desde cedo e antes dos demais, começam a frequentar tais mestres (διδασκάλων) e são os últimos a deixá-los. Assim que os deixam, a cidade como que os obriga a conhecer as leis e a tomá-las como regras de conduta (...)
Tais palavras de Protágoras são
bastante claras, e realça a extraordinária
importância dos ginásios no
cotidiano juvenil da vida grega. São
palavras que igualmente evidenciam
o status quo do regime educacional
estabelecido nas πόλεις gregas, com
as quais, todavia (através de Sócrates
confabulando com Protágoras),
Platão não se mostra assim em pleno
desacordo, apenas disposto a entender
a realidade existente com um objetivo
preciso: qualificar ainda mais
o ambiente dos ginásios e o regime
educacional nele restrito. A fala atribuída
a Protágoras evidencia a preocupação
de Platão (sempre consoante
a seu método: germinar a realidade
mediante princípios de idealidade)
em trazer ao debate o status quo da
realidade cotidiana à idealidade de
suas proposições ou projetos. Com
a filosofia –eis a questão– o objetivo
da educação reclusa tendeu a dar um
passo a mais: assim como Licurgo
planejou retirar o παιδός dos valores
restritos familiares, a filosofia pressupôs a necessidade de buscar valores
universais, mais exatamente valores
que só a educação de um pensar lúcido
e sensato fosse capaz de produzir e
de satisfatoriamente proferi-los.
A verbalização da realidade com
a qual Platão mais se ocupou em
seus escritos foi aquela difundida ou
fomentada sobretudo pelos sofistas,
que, por todas as πόλεις gregas, gozavam
de um grande reconhecimento
popular. Dentre os sofistas, Platão
deu primordial importância (e ouvidos)
a Protágoras, a Górgias e a Hippias:
os três mestres mais louvados
e requisitados no universo do ἔθος cívico e da cultura grega. Platão, aliás,
dedicou um diálogo para cada um, e
por pelo menos duas razões: de um
lado, por força do reconhecimento
quanto à importância deles no cenário
da cultura e da educação grega;
de outro, porque era cânone fundamental
do platonismo a necessidade
de compreender (entender, conhecer)
uma determinada realidade a fim de
reformá-la. Sob uma perspectiva geral,
Platão vai ao debate com eles por
este motivo: porque o diálogo exige a
dicção da verdade, a tal ponto que os
implicados na confabulação dialógica
contam apenas com uma única possibilidade,
qual seja, o de empenhar-se
juntos na busca da verdade. A falsidade
não é edificante e não faz nenhum
sentido confabular em favor da “edificação”
dela: porque a sensatez de
modo algum permite que se edifique
o que não edifica!
O compromisso com a verdade é
condição sine qua non de qualquer
diálogo. Sem esta condição, ou seja, sem o envolver-se, sob o signo da
verdade, com os valores tradicionais
no intuito de qualificá-los, nenhum
projeto filosófico e educacional encontra
a boa perspectiva quanto à
possibilidade de alçar-se ao que os
gregos (em particular Platão) denominavam
de βέλτιστος, superlativo
de ἀγαθός, do que é bom, belo
e justo. Daí que era imperativo para
Platão se inteirar do status quo da realidade
grega, a fim de regenerá-la.
A maior fonte que lhe veio em amparo
foi a sofística, dentro da qual
vicejavam os mestres mais salientes
e reconhecidos (e muito bem pagos)
da civilidade grega. Foi nisto, pois,
que consistiu a pedagogia platônica:
em envolver-se com os “valores tradicionais”
a fim de melhorá-los.
Havia, entretanto, uma limitação:
lá, naquela ocasião, assim como ainda
hoje, a referida pedagogia findou
(como ainda hoje finda) por alguns
mal acolhida e/ou mal interpretada.
Ocorre que a tentativa de qualificar
valores ancestrais sempre veio a ser
por muitos tomada como uma atitude
no sentido de “estragá-los”. Ora,
não há como –isto é fato– alguém entrar
numa sala de aula, cursar várias
disciplinas, diplomar-se numa área
de estudo e continuar pensando do
mesmo modo e sob os mesmos restritos
valores de seus ancestrais, que,
muitas vezes, sequer tiveram a oportunidade
do acesso aos estudos. Isso
é uma coisa, outra bem pior, está em
acreditar que a qualificação mental
dos que se dedicaram à vida de leitura,
investigação e estudos resulta
em “estragar” o modo de pensar dos ancestrais. Ora, sem algum estrago,
não há, por suposto, prosperidade
alguma!
Imerso na realidade grega, Platão
concordava, sim, quanto à necessidade
de priorizar a educação em vista
da saúde do corpo, porém, defendia o
ideal, sob o imperativo do filosófico,
quanto à necessidade de uma qualificação
teórica da inteligência ativa e
do cultivo de uma mente (alma) tão
saudável quanto o corpo. Ele retoma
em termos as mesmas proposições
ideadas pela ancestral legislatura de
Licurgo, que, na posteridade, foi retomada
por Sólon, e que, agora, ele próprio
(Platão) se dispõe a reformá-la.
Os ginásios e a ginástica não ficaram
de fora de seu projeto; ao contrário,
foram idealmente reformados como
imprescindíveis para o ordenamento
cívico que precisa “da excelência do
corpo” (τῆς τοῦ σώματος ἀρετῆς)
do cidadão e da alma em uma só virtude (Leis II. 673 a). Quanto ao ordenamento tradicional, praticado no
cotidiano da πόλις, Platão, em seus
escritos, se mostra ciente de que, sob
alguns aspectos, os ginásios extrapolaram
suas funções. Não, todavia, em
termos morais, e sim na medida em
que os jovens foram deixados a um
“cuidado excessivo do corpo, muito
além dos exercícios usuais da ginástica”
(República III. 407 b5-6).
O curioso é que em Platão, em suas
principais obras, não se observa qualquer
referência negativa aos ginásios,
antes, dentro do projeto da καλλίπολις (da cidade ideal por ele concebida)
lhes concede um lugar de destaque. O
tipo, por exemplo, de observação fei ta por Cícero (República IV. 4), que
os ginásios eram o lugar da permissividade
e dos “amores dissolutos e
livres”15, não comparece em Platão, e,
tampouco, coincide com a mentalidade
grega. Não é comum à mentalidade
filosófica dos gregos esse modo de
expressão moralista genérica, aberta,
facilmente moldável ao “gosto” deste
ou daquele público auditor, ou, como
diríamos hoje, “do freguês”. Cícero,
desse modo de expressão, foi o grande
mestre, na medida em que falava o
que os moralistas patrícios, ouvindo-o,
entenderiam o que gostariam de entender.
Nesse ponto, Cícero (106-43
a.C.) manteve-se no mesmo tablado
dos oradores e logógrafos gregos, tais
como Isócrates e Demóstenes, e não
no chão do filósofo grego. Cícero casou
a eloquência retórica com a política,
a ponto de vir a se elevar como o
mais eloquente retórico tutelado pelos
moralistas patrícios da elite romana.
Depois dele veio Sêneca que foi sem
dúvida um outro exemplar do discurso
fluído, dissimulado, sempre bastante
amplo a ponto de ser sempre semanticamente
bem acolhido.
É certo que nem tudo na πόλις,
em particular lá dentro do ginásio, lugar
em que muitos jovens consumiam
o seu ócio (σχολή = descanso, repouso,
tempo livre16) na desocupação, se submetia ao controle dos gimnasiarcas
e dos pedótribas. Até onde era
possível, sob a vigilância do consuetudinário
e dos fiscais da πόλις, havia
severa vigilância no sentido de coibir
os excessos, por exemplo, a vaidade
mais que a satisfação, o corpo cansado
mais que a busca por um corpo
saudável. Foi nesse ponto, tal como
Platão fez constar na República (III.
407 c), que a ginástica veio se contrapor
à filosofia, que, no pensar de muitos
cidadãos, tratava-se de um estudo
muito severo, desproporcional, na
medida em que o ofício de filosofar
forçava o cérebro dos jovens desocupados
a ponto de levá-los à fadiga e
à vertigem. Algo semelhante, Platão
fez constar nas Leis (I. 646 c; III. 684
c), dizendo que a ginástica findou
criticada pelos pais ou κύριος, sobretudo,
por promover nos jovens algo
semelhante: a vaidade antes do prazer
e do bem-estar, a fadiga (o cansaço,
o exaurir de forças) antes da saúde,
com sérias consequências tanto para
os estudos quanto para as atividades
do cotidiano familiar.
3.- Atenas e a maioria das πόλεις gregas seguiram em tudo, senão os
anseios e os métodos, ao menos a
noção e a idealização regimental cívica da educação espartana que, aliás,
não era muito diferente da de Creta.
Da legislação de Licurgo, as πόλεις gregas verteram a necessidade, feito
uma obrigação do Estado, de recolher
o παιδός, a partir dos sete anos,
a fim de trabalhar com ele o vicejar
da razão. Em recinto fechado, pelos
espartanos denominado de ἀγέλας,
aos meninos reclusos era dado partilhar
do mesmo alimento e de uma
educação comum17, com o seguinte
objetivo: fortificar e controlar pela
ginástica e pela escolaridade, tanto
o corpo, em vista da guerra, quanto
a mente (pela capacitação do uso da
razão), em vista da civilidade.
Platão, em seu projeto filosófico
e educador, no intuito de reedificar o
ἔθος cívico da παιδεία grega, retoma
Licurgo como fonte de inspiração e
norte para o seu projeto. A legislatura
por ele idealmente concebida sob os
termos de uma καλλίπολις, de uma
cidade bela, expressou, nas Leis (VII.
804 c-d) prescrições semelhantes às
de Licurgo:
Construiremos edifícios para o funcionamento dos ginásios e das escolas coletivas (κοινῶν), no centro da cidade, em três lugares diferentes. Fora dos muros, construiremos também três campos de treinamentos para equitação, para o arco e a flecha e para outras modalidades (...). Para cada uma, teremos mestres de fora (ξένους διδά- σκειν), que, na condição de residentes, serão pagos para fornecer todos os conhecimentos relativos à guerra (πρὸςτὸν πόλεμόν) e à música (πρὸς μουσικήν). Não deixaremos ao encargo da vontade dos pais obrigar seus filhos a frequentar ou não os conhecimentos (...), afinal, eles são filhos da pólis mais que de seus genitores.
As prescrições são claras: seriam
construídos edifícios específicos com
dupla finalidade: para a exercitação
da ginástica e para o aprendizado
escolar. O ensino seria ministrado,
nos termos como Platão fez constar
na República (V. 452 a-b) como
uma obrigação subsidiada pelo Estado
independentemente da vontade
ou critério dos pais, e, inclusive,
para as mulheres. Ele abrangeria as
duas amplas áreas priorizadas desde
os ancestrais, pela cultura grega: a
da γυμναστική e a da μουσική. No
contexto da γυμναστική, Platão fala
explicitamente dos ensinamentos
(μαθήματα) relativos à guerra (πρὸς
τὸν πόλεμόν). Não que ele fosse um
defensor no sentido de resolver os
problemas e as adversidades entre as
πόλεις valendo-se do recurso bélico.
Na Carta VII (333 d) certamente o
mais extraordinário testamento político
e filosófico de Platão, ele apela à
todas as πόλεις que troquem “a guerra
pela amizade”. O que nas Leis (sem
entrar aqui na discussão a respeito da
autenticidade platônica dessa obra),
ele manifesta relativo ao πρὸς τὸν
πόλεμόν (ao em favor da guerra)
como o fim primordial da ginástica,
tem tudo a ver com a sua admiração
por Esparta que concebeu a ginástica
como um exercício essencialmente
preparatório para a defesa e garantia
da autonomia das πόλεις.
A esse respeito, Platão registrou
no Protágoras (342 e), como palavras
do sofista Protágoras que a educação
espartana, apenar de ter concebido o
exercício da ginástica como uma preparação
do jovem guerreiro, mesmo
assim dava mais importância ao cultivo
do “amor à sabedoria (φιλοσοφεῖν) que ao amor propriamente dito
pela ginástica (φιλογυμναστεῖν)”.
No Laques (183 a), Platão efetivamente
registrou que, de todos os helenos,
eram os lacedemônios os que mais se
dedicavam ao preparo da guerra; nas Leis, referindo-se à Creta, diz que lá
“a alimentação em comum (τὰ συσσιτία) e a ginástica (τὰ γυμνάσια)
foram concebidas pelo legislador em
vista da guerra”. Na República (III. 404
b), ele registra idêntica observação
acompanhada da seguinte pergunta
de Sócrates: “A mais valiosa ginástica
não é irmã (βελτίστη γυμναστικὴ
ἀδελφή) da μουσική, nos termos que
acabamos de tratar?”. Glauco objeta:
“O que com isso queres dizer?”. Sócrates
responde: “Estou me referindo
a uma ginástica simples, equitativa
(ἐπιεικής = moderada, mansa, suave),
daquela que certamente se destina
à guerra (περὶ τὸν πόλεμον)”.
Nesse e em outros contextos da
República (IV. 429 e – 430 a) Platão
dá efetivamente a entender que a educação
do guerreiro e do cidadão em
geral não haveriam de ser particular
ou substancialmente distintas. Foi,
pois, pensando assim que ele, ao idear
a καλλίπολις, tendeu a reabilitar,
a exemplo de Licurgo, o exercício da
ginástica sob uma função primordial:
a da promoção do vigor (da ἀρετή) do guerreiro por sobre o necessário
fomento do vigor do cidadão; mas
com uma diferença: sob o conceito de
uma ginástica moderada (ἐπιεικής).
Ocorre que, do ponto de vista da
καλλίπολις de Platão, o cuidado excessivo
do corpo (aquele cuidado que
vai muito além do exercício necessário)
é tido como prejudicial sob todos
os aspectos, a ponto de vir a ser uma
fonte de prejuízos quanto ao bom desempenho
das obrigações laborais e
cívicas. Por isso que, igualmente na República (III. 407 b; 410 b), ele reconhece
que a fadiga corporal, antes de
fomentar enfraquece o vigor do corpo
e promove consequências negativas
em todos os setores: no desempenho
da economia (οἶκος) familiar, das expedições
militares e da vida política.
São, entretanto, duas coisas que
Platão não contrapõe, apenas quer
complementar: de um lado, a ginástica
que priorizava o vigor do corpo como
ideal de beleza e de orgulho juvenil;
de outro, a preparação do atleta e do
guerreiro. Não entra no projeto de
Platão qualquer preocupação no sentido
de dissolver esses ideais, mesmo
o da preparação para a guerra. Sob
as pretensões da καλλίπολις, o que
Platão na República (II. 357 c-d) priorizou
restabelecer foi a função essencialmente
cívica da ginástica, e, desse
modo, retirar dela a ilusão promovida
sob a condição de uma profissão fundamentalmente
lucrativa para os mestres
perambulantes de ginástica que se
acumulavam pelas πόλεις.
Daí a razão pela qual toda a educação
relativa à γυμναστική, no projeto
educador platônico, é concebida em termos de um bem cívico, e, desse
modo, como uma função do Estado,
com mestres estrangeiros residentes
contratados e pagos para este fim. A
esse respeito, a ideia de Platão é construída
no sentido de fechar os espaços
da profusão de sofistas παιδοτρίβης,
que, “feito sereias”, se punham a encantar
os jovens com suas “valiosas”
ofertas de corpo belo e saudável: incialmente,
de graça, depois, a bom
preço, e, enfim, a preço de ouro. Ele
quer, ademais, estender a todos o acesso
aos Ginásios, e, neles, à ginástica e à
escolaridade. Nesse ponto, ele defende,
dentro do modo de pensar pitagórico,
que o saber, feito sementes, deveria ser
gratuitamente espalhado (semeado)
por todos os cantos e a quem tivesse
disposto em fazê-lo germinar.
Platão, efetivamente, em vários
pontos retomou a legislatura de Licurgo,
nos termos, por exemplo,
como registrou Plutarco, na Vida de
Licurgo (XXIV. 16. 4):
Licurgo não confiou os filhos dos espartanos aos cuidados de mercenários pedagogos (παιδαγωγοῖς) comprados a preço de ouro, tampouco permitiu ao pai criar e educar seu filho a bel-prazer. Assim que as crianças alcançavam a idade dos sete anos, ele determinava que se recolhessem a uma educação comum. Para isso, as distribuía em diferentes agélas (ἀγέλας), nas quais compartilhavam o mesmo alimento e a mesma educação e ali se ocupavam de brincar e estudar (συσχολάζειν).
Não era, portanto, prioritariamente
a guerra o que estava em questão.
Tanto que, como vimos, prevalece no ideário platônico a necessidade de estimular
e de cultivar entre as πόλεις a
amizade e a troca, em nível de intercâmbio
comercial de bens excedentes.
Na proposta de Platão, o que haveria
de sempre imperar era a sensatez e
a razoabilidade: ideias que todas as πόλεις deveriam almejar e requerer
emolduradas na mente de seus cidadãos.
Bem por isso que caberia ao
Estado prover e financiar os mestres
da μουσική: porque, como Platão fez
constar na República, os ensinamentos
da γυμναστική (da prática dos
exercícios físicos, dos princípios da
boa alimentação e da preservação da
saúde) e os da μουσική (das disciplinas
atinentes à escolaridade básica)
são como duas irmãs siamesas inseparáveis
(III. 404 b): uma não exclui
a outra, ao contrário, se carecem, e,
além disso, se equilibram feito, como
ele diz, “a brutalidade e a doçura” (III.
410 d-e).
Era função do que os gregos denominavam
de μουσική, promover
a saúde e a sabedoria da alma (do
âmbito da vontade e da razão, dos
sentimentos e das emoções); da γυμναστική, estimular a saúde (que
implicava em conhecimento) e o vigor
do corpo18. Ambas se constituíam
em artes essencialmente cívicas
mediante as quais do cidadão, desde a infância e em todas as idades, se
requeria, sob equilibrada medida, a
boa disposição corporal e o bom ânimo
da mente. Foi assim, aliás, sob os
ideais da καλλίπολις (República II.
376 e – 377 a), que Platão concebeu
a ginástica como um complemento
às disciplinas da μουσική, ou seja, da
escolaridade básica, dentro da qual
a música propriamente dita ocupava
um lugar especial: tinha por função
promover “tensão e relaxamento
conforme as circunstâncias” (III. 411
e – 412 a). Duas outras disciplinas da
μουσική, dentro do projeto platônico,
como consta na República (VIII.
548 b-c), passariam a ser fundamentais:
o aprendizado da conversação,
no sentido de saber produzir um
discurso (λόγων) mediante o manuseio
eficiente dos símbolos da linguagem,
e o da filosofia, no sentido de se
apropriar, imersa na conversação, da
capacidade de produzir opiniões ou
explicações mediante argumentos racionalmente
fundamentados.
As artes da ginástica, ao contrário
do que ocorria no tempo de Platão,
seriam ministradas, dentro do projeto
da καλλίπολις como um “complemento”
às da música, por pelo
menos duas razões: primeiro, porque
a severidade dos conhecimentos que
promovem a saúde e a sabedoria na
alma humana eram (e são) bem mais
desencorajadores que os da ginástica (República VII. 535 b); segundo, em
razão de que, do ponto de vista do
projeto educador platônico, dentro,
porém, do contexto das Leis (V. 292
a), a educação decorrente das disciplinas
ditas da μουσική, ou seja, das “musas”, que compreendia a gramática,
a sinonímia, a dialética (entendida
como técnica de investigação discursiva,
ou, simplesmente de conversação)
e a retórica, haveriam de anteceder
(mesmo que unidas) às da γυμναστική. Seriam, pois, disciplinas
complementares, com o que o projeto
platônico tendia a dissolver o excesso
de estima que, naquela ocasião, os
jovens e os cidadãos em geral cultivaram
pela ginástica em detrimento do
estudo das disciplinas da μουσική.
Platão, na καλλίπολις, ao mesmo
tempo em que põe em evidência
os usos e costumes tradicionais, quer
ser inovador: fazer com que, mesclado
ao antigo, viesse, sem preconceito,
renascer o novo. Nos edifícios
por ele idealmente concebidos “para
o funcionamento dos ginásios e das
escolas coletivas” haveria espaço para
todos: para ambos os sexos, meninos
e meninas, homens e mulheres, desde
à infância à velhice (Leis VI. 764 c-d).
Ocorre, todos sabemos, que a ginástica
quanto aos seus resultados em
favor do vigor do corpo são imediatos,
no máximo a médio prazo, não,
a rigor, a longo prazo, visto que se esvaem,
forçando o ginasta a recomeçar
sempre de novo. Os resultados a longo
prazo da ginástica são apenas os de
uma ginástica mal feita, prejudicial,
que perduram, inclusive, muito tempo;
já os de uma ginástica bem feita
requerem continuidade exercícios
moderados, suaves, desde a infância
à velhice. Assim, pois, foi o que propôs
Platão na República (V. 452 a-b)
requerendo, inclusive, que também as
mulheres, despidas (γυμνὰς τὰς γυναῖκας), se exercitassem na companhia
dos homens. Mulheres e homens
de todas as idades, incluindo as jovens
e os jovens, os velhos e as velhas,
que, como ele diz, “apesar das rugas
e do aspecto pouco agradável de ver”,
deveriam se dispor como qualquer
um a praticar e a amar o exercício da
ginástica (φιλογυμναστῶσιν)19.
Aqui entra a seguinte questão: se
a nudez dos homens escandalizou os
moralistas latinos, imagina se a tal
proposição da καλλίπολις tivesse
se efetivado: homens e mulheres, de
todas as idades, se exercitando juntos,
e nus, em um único ambiente! O
próprio Platão, na República, assinala
que a sua proposta resultaria “em um
espetáculo engraçado (γελοῖον = risível,
ridículo)” segundo os parâmetros
cívico da Atenas de seu tempo (V.
452 b 4-5). Isócrates (436-338 a.C.),
contemporâneo de Platão, confirma
a sua preocupação: “Hoje, entre nós
(sentenciou), são tidos como de inteligência
bem dotada, os que se fazem
hábeis no manejo do escárnio e do
sarcasmo” (Discurso aeropagítico 49).
Sem dúvida era um hábito comum;
mas Platão não parece preocupar-se:
“não devemos temer os gracejos dos
espirituosos”. Ele se mostra ciente de
que, apesar dos galhofeiros era necessário
ousar e buscar a inovação
relativa à participação, sobretudo, das
mulheres “referente à ginástica e à
música – περὶ τὰ γυμνάσια καὶ περὶ
μουσικήν”, e, inclusive, no manejo
das armas e na equitação; lembremos, acrescenta, “que até bem pouco
tempo, os helenos consideravam
desonroso e ridículo o espetáculo do
homem nu, como, aliás, ainda hoje é
o caso da maioria dos bárbaros” (República V. 452 b-d).
O fato é que do ponto de vista da
legislatura (πολιτεία) platônica, a
nudez humana era reconhecida como
absolutamente natural, e a nudez, por
si só, não promovia ou abria espaço
para qualquer autorização ou permissividade.
Vestidos ou nus os membros
da comunidade da καλλίπολις haveriam de humanamente se resguardar
sob pressupostos do que é
bom, belo e justo, em síntese, do que
é divino (sinônimo do que é excelente)
e, em vista dele, portar-se sob padrões
de qualificação ou de humana
virtude. O principal da exposição da
nudez dos mais velhos recaía sobre
um fundamento educador: levar a todos,
em particular os jovens, a visualizar
e a se familiarizar com o retrato
da senda inevitável dentro da qual a
beleza de sua nudez juvenil necessariamente
viria a se consumir e a se realizar.
Vendo na exposição da velhice
a representação do próprio futuro, ou
seja, deparando-se hoje com um retrato
aproximado do amanhã vivido,
os jovens, por certo, se acautelariam
na vaidade e na arrogância; e, ademais,
veriam que é na velhice que se
encontra a realização (o τέλος) da
vida humana. Afinal, só não envelhece
ou fica velho quem morre antes da
realização plena do ciclo vida.
Não só quanto às proposições
referentes à ginástica e à inclusão
dos idosos, mas também quanto à καλλίπολις como um todo, Platão
via nos sátiros uma iminente possibilidade
de transformar o novo em
chacota e riso. Os sátiros e os comediógrafos,
feitos serviçais conservadores
do estabelecido (é o que se lamenta
Platão), satirizavam e faziam
os cidadãos rir do novo como se fosse
um desvio de padrão, a ponto, enfim,
de transformar o riso (por si só uma
fonte de humana edificação) em um
instrumento perverso contra a civilidade.
O perverso é que tais poetas
findavam por conceber a “realidade”
grega submetendo-a à chacota, com
um objetivo essencialmente político:
conceber e reinventar os desvios
da vida cívica, como, por exemplo, a
corrupção na política, o machismo,
a homofobia e tantos outros crimes,
de uma forma engraçada. O “trágico”,
que não deixava de ser uma estratégia
política cruel, se dava na medida em
que todos esses crimes, submetidos
à galhofa, roubavam (como efetivamente
roubam) da realidade, mesmo
que malvada e pervensa, a necessidade
de não levar tais crimes a sério;
dito de outro modo: a comédia findava
por favorecer, sob a conotação do
engraçado e do hilário, o trânsito do
desvio e do malfeito sem a necessária
criminalização.
Pelo que consta no mesmo Platão,
não se tratava de um fenômeno estritamente
atual: “quando os cretenses,
por primeiro, e, depois, os espartanos
introduziram a prática dos exercícios
nus (τῶν γυμνασίων) também
os comediantes da época zombaram
da inovação” (República V. 452 c-d).
O fenômeno era antigo. Entretanto, não era a comédia em si, tampouco a
poesia e os poetas, que Platão tendeu
a desqualificar. Em vista disso, cabe
dizer que, o que habitualmente se diz
no sentido de que Platão “excluiu” ou
“baniu” de sua República a poesia e
os poetas, além de não fazer sentido,
contém uma lamentável desinformação.
A proposição segundo a qual ele
“expulsou os poetas da República” é
inconveniente, uma simplificação
preguiçosa que não corresponde ao
teor da crítica e da ideação filosófica
de sua doutrina. A esse respeito qualquer
análise carece de levar em conta,
por exemplo, o que ele sentenciou no
Lísis (214 a): “Os poetas são, para nós,
os pais e os guias da sabedoria”. Outro
fator ainda diz respeito à liberdade
da palavra, e, com ela, a franqueza (a
παρρησία20), que, para os filósofos,
se constituíam na virtude mais bela
e valiosa que o Estado, no confronto
dos que se entregam à sabedoria, deveria
garantir e levá-los a cultivar.
Cabe aqui, neste ponto, apenas
uma breve observação: a liberdade,
nos termos da παρρησία a que Platão
se refere não atinge diretamente o
pensar. Ocorre que o pensar humano,
quieto (silencioso) em si mesmo, é absolutamente
livre. A dificuldade se põe
na expressão do pensar, na medida em
que ele se estende pelo discurso e atinge
diretamente os demais, e, consequentemente,
o todo da comunidade
estabelecida. Não é, pois, a liberdade
de pensar, enquanto exercício da von-tade para si, que faz nascer o uso livre
da palavra, e sim o da παρρησία, ou
seja, da disposição interna, em termos
de franqueza, que se caracteriza por
uma capacidade (feito uma virtude)
que consiste em se dar a liberdade de
dizer o que pensa sob o signo do que é
verdadeiro, bom e justo. De um ponto
retirado de Platão21 a mais extraordinária
liberdade que um homem pode
ter ou cultivar é aquela mediante a
qual vem a ser capaz de se dar, sob
princípios de bondade e de justiça, um
bem para si mesmo e para os demais.
O dar-se o mal para si, e, consequentemente,
para os outros, não se constitui
para Platão em liberdade, tampouco
em franqueza, e sim em um transtorno;
não se constitui do mesmo modo
em educação, em uma mente educada,
e sim na falta ou carência dela.
4.- Resta, enfim, a título de conclusão
considerar que a educação entre
os gregos se impôs com uma efetiva
obrigação do Estado. Licurgo, com
sua legislatura, promoveu dois feitos
que se estenderam por toda a Grécia: a) o ordenamento cívico das πόλεις mediante leis que garantissem a liberdade
e a justiça para todos; b) a educação
da infância, como pressuposto
indispensável de qualificação humana
e de melhoria cívica dos futuros cidadãos.
Platão, no Banquete [209 d],
diálogo no qual louva o amor, louvou
Licurgo como aquele que promoveu
“a salvação (σωτηρία) de Esparta, e,
quase direi, de toda a Grécia”; na Carta VIII, teceu-lhe este valioso elogio:
o de “homem sábio e bom – σοφὸς
ἀνὴρ καὶ ἀγαθóς” (354 b). Assim o
fez porque viu no projeto educador de
Licurgo uma preocupação que não se
restringiu apenas à escolaridade, mas
se estendeu à civilidade: ao ἔθος cívico
cujo comportamento deveria se
pautar por parâmetros conviviais de
amabilidade, de gentileza, de cortesia,
e, sobretudo, de cuidados recíprocos.
Consta, em Plutarco, Vidas Paralelas,
que Licurgo, formulou um
regime de leis constitutivas de um
ordenamento cívico bem rigoroso
para os espartanos. A educação ele
a concebera, segundo relato de Plutarco,
como “a obra mais importante
e preciosa” de sua legislatura, e que,
em vista dela, se ocupou de “regular
os matrimônios e os nascimentos”
(XXI. 14. 1-2). Na carência de professores,
Licurgo elevou os anciãos
(πρεσβύτεροι) publicamente reconhecidos
como veneráveis por sua
sabedoria e virtude, à condição de διδάσκαλοι (de professores e instrutores)
da infância. Aos tais anciãos,
em relação ao παιδός, lhes deu, num
só tempo, a obrigação de exercerem “a
paternidade, a mestria e a governança
(πατέρες (...) καὶ παιδαγωγοὶ καὶ
ἄρχοντες)” (XXVII. 17. 1). Foi a partir
deles que Licurgo cunhou o nome
de διδάσκαλος, cujo sentido literal se
expandiu igualmente por toda a Grécia
e nomeou em todos os tempos a
função do professor, nestes termos:
como aquele que, com arte, equipa,
adorna e exercita o παιδός na capacitação
dos instrumentos do dizer e do
pensar, na apropriação dos ditames da vida cívica (da Politeía) e na boa
vontade de se apropriar das sementes
civilizatórias plantadas e cultivadas
de geração em geração. Desde os primórdios,
portanto, lá em Esparta, um
Estado que persegue, acua e desqualifica
os seus διδάσκαλοι, é constituído
de bárbaros: de tiranos que têm por
caraterística fundamental a insensatez
e a ignorância.
A legislatura de Licurgo depende
da de Minos, do legislador de Creta22.
Mas, eis aqui a sequência das mais salientes
legislaturas e dos legisladores
gregos: Foroneu em Argos, Mino sem
Creta, Licurgo em Esparta; em Atenas
tivemos vários legisladores: primeiro
Teseu, depois Drácon (cuja legislatura
foi promulgada por volta de 621 antes
de Cristo23), depois Sólon (638-558
a.C)24, depois Clístenes (565-492 a.C.),
e, enfim, Péricles (495-429 a.C.)25. Foi
Clístenes, a partir de Sólon, quem
solidificou as bases sobre as quais se
assentou a democracia de Péricles
com o qual Sócrates (469-399 a.C.)
partilhou contemporaneidade. Mesmo
que Platão não fosse um político de profissão, ele de modo algum cabe
ser visto como apenas um filósofo, e
sim, enquanto filósofo, como um personagem
político, feito uma espécie de
legislador. Ele era descendente de uma
família de políticos e de poetas:
Platão de Atenas era filho de Áriston. Sua mãe Perictione ou Potone descendia de Sólon através de Dropides, irmão do legislador e pai de Crítias, que teve por filho Cáliscros e Gláucon; de Cálistros, nasceu Crítias que pertenceu ao grupo dos trinta, e, de Gláucon, nasceram Cármides e Perictione, a mãe de Platão (...) (Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres III. 1).
Platão registrou na Carta VII, que, enquanto adolescente, sonhava, na vida adulta, “ingressar na política” (324 c). Mas não o fez, optou pela filosofia. Não porque desprezasse a possibilidade da eficiência da ação, e sim porque naquele momento, como ele próprio reconhece, o púlpito do filósofo garantia bem mais resultados que o do político:
Findei por me convencer que as cidades de nosso tempo são mal governadas... Por isso fui levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, convencido de que somente ela pode traçar os limites do justo e do injusto quer na vida política quer na dos particulares (τῶν ἰδιωτῶν). Estou certo de que os males não cessarão para o gênero humano antes que a verdadeira filosofia e os verdadeiros filósofos alcancem o poder, ou que, por algum favor dos deuses, os governantes venham a filosofar (Carta VII. 324 b-d).Acreditar (acrescentou) que basta estabelecer leis, sejam quais forem, para que haja um bom governo, sem dispor de um κύριος que cotidianamente zele pelo regime de vida e que promova a sensatez (σώφρων) e a humanidade (ἀνδρική) dos serviçais e dos homens livres, é um engano manifesto (Carta XI. 359 a).
Toda a reflexão filosófica de Platão
findou por se assentar na crença
e no fomento, a par de um bom regime
e de um bom governo das leis,
da possibilidade do humano continuamente
promover a ἀνακαίνωσις: a
renovação, de geração em geração, da
vida humana. Foi, pois, pressupondo
essa regeneração que ele se voltou
para o que, desde Creta e Esparta,
caracterizou todo o desenvolvimento
histórico da cultura e que, enfim,
deu identidade política aos gregos: o
consuetudinário (νόμιμος), o estatuto
jurídico νόμος) e a παιδεία. Esses
três aspectos entraram igualmente a
se conjugar no projeto educador concebido
por Platão, projeto que, entretanto,
não se restringiu a uma πολιτεία, pois se estendeu a uma πaιdεία.
Quer dizer: Platão ao se ocupar com
a educação do παιδός como forma de
regenerar as novas gerações, e, com
ela, a πόλις, assim procedeu ao modo
de um Licurgo, ou seja, ocupando-se
em idear (construir) um projeto de πόλις ao mesmo tempo em que ideava
(construía) um projeto educador,
e, com ambos, um novo ἔθος e uma
nova civilidade.
No desmonte de um Estado se
dá o contrário: ele se faz necessariamente
acompanhar da destruição ou desmonte de um projeto educador.
Só um governante insano é capaz de
uma tal loucura, que, por sua índole
pressupõe fechar-se defronte à prosperidade
do saber e da qualificação
humana. Só uma sociedade “doente”
extraordinariamente massificada
e alheia aos destinos de si mesma é
capaz de permitir uma tão insolente
loucura. Parar no tempo da qualificação
humana quer para um indivíduo
quer para um povo, significa se
descuidar do oneroso empenho em
busca do melhor (do βέλτιστος, superlativo
de ἀγαθός) com o que se
promove um “espetáculo de loucura,
e até mesmo da maldade” (V. 452 e 1).
Assegura neste mesmo contexto Platão,
que, de todos os males, o pior se
impõe a um indivíduo e a um povo
quanto finda por se empenhar em
alcançar o belo, o bom e o justo por
qualquer outro meio que não seja a
senda do bem. Trata-se, ademais, de
um empenho supérfluo, em razão de
que o bem em si mesmo não se constitui,
a rigor, em fim da ação, mas em
meio, ou seja, coincide com o próprio
caminho da qualificação humana26.
Quer dizer: qualificar-se humanamente
não significa estritamente
chegar a algum lugar, e sim continuamente
percorrer a difícil (Fédon 108
a) senda do bem para nós humanos
sempre desafiadora e misteriosa. Daí
que foi pressupondo uma “φρόνησις do bem” (República VI. 505 c 2) que
Platão arquitetou o principal da atividade
educadora que consiste na habilitação humana do uso eficiente da
razão (da ação do pensar). Refere-se a
um uso que, com muito custo, desde
a infância, homens e mulheres são estimulados
a lentamente abrir os olhos
(da inteligência) em vista de ideais de
bondade e de justiça. O custo ainda se
amplia na medida em que, de geração
em geração, no tombar do velho e no
renascer do novo, tudo parece que se
apresenta como carente de mais uma
vez se reiniciar, sem, entretanto, ter
qualquer garantia e certeza de que,
desta vez, vai melhorar.
O lamentável é que a ideação da
legislatura (πολιτεία) e do projeto
educador de Platão findaram sem
alcançar a prática, o teste da ação, de
modo que apenas serviu de fonte ou
instrumento inspirador para a posteridade.
Mas, não nos iludamos, admitindo
que Platão ingenuamente acreditasse
na efetivação cívica de seus
ideais grandiloquentes. Se realmente
acreditasse não teria dito o que disse
no final do livro IX da República (592
a11): que a “cidade que acabamos de
fundar” só existe na forma de um discurso
(ἐν λόγοις, em palavras). Daí
que, metodológica e reflexivamente,
ele trabalhou a sua πολιτεία sob dois
focos: o da realidade e o da idealidade!
Em vista desse consórcio Platão
se mostra, entretanto, ciente da necessidade
de que é preciso, mediante
princípios de idealidade, fertilizar a
realidade, sem, porém, subjugá-la,
e isso quer dizer apenas fecundá-la
mediante ideais concernentes ao que
é razoável e ao que é sensato.
Sendo assim, na medida em que
ele reconheceu que a καλλίπολις de sua πολιτεία só teria existência no
pensamento ou em palavras, não se
mostrou assim tão confiante de que
a proposta inovadora da cidade bela (na qual haveria de imperar o que é
bom, o que é belo e justo) fosse fácil
e prontamente acolhida pelo ἔθος regimental da cultura. O que efetivamente
ele manifestou (República V. 452 d-e) foi a esperança de que,
no decurso do tempo, ocorreria em
Atenas o mesmo que se deu entre os
cretenses e os lacedemônios: lá, no
passar do tempo e com a prática, a
experiência mostrou a todos que o
ridículo não estava no novo, e sim
nos olhos quer dos incultos manipuláveis
quer dos defensores inamovíveis
do estabelecido e do “interesse
dos mais fortes” (República I. 336
b). Bem por isso a extraordinária
importância que ele deu à πόλις no
sentido de tomar para si, sob o pressuposto
da παρρησία, a responsabilidade
quanto ao sustento da arte
didascálica da educação quer perante
as crianças e os jovens quer fortalecendo
os mestres e os instrutores.
Ele assim a concebeu nos termos
de uma obrigação que encontra na
promoção do luzeiro da inteligência
humana, e dentro do ambiente ou
recinto escolar, o seu lugar de realização:
ambiente no qual vem a ser
possível abrir, perante as gerações,
novos horizontes de compreensão
e de entendimento, e, consequentemente,
novas frestas de renovação
em vista do melhor.
Notas
* Graduado em Filosofia e Estudos Sociais com História. Mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Santo Tomás, Roma, Itália. Professor colaborador aposentado em la Universidade Federal de Santa Maria, en Brasil. Es autor de Filósofos Pré-Socráticos. Primeiros Mestres da Filosofia e da Ciência Grega, Porto Alegre, 3ª ed., 2012; Helenização e Recriação de Sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo, séculos II, III e IV, 2ª edição revisada e ampliada, Caxias do Sul, 2015; Herança Grega dos Filósofos Medievais, São Paulo, 2013; Questões Fundamentais da Filosofia Grega, São Paulo, 2006; Bacon, Galileu e Descartes: o renascimento da filosofia grega, São Paulo, 2013; Os Caminhos de Epicuro, São Paulo, 2009; O Nascimento da Filosofia Grega e sua transição ao medievo, Caxias do Sul, 2010; Epicuro e as bases do epicurismo, São Paulo, 2013; Ética e Política: a edificação do éthos cívico da paideia grega, São Paulo, 2017. [Caixa Postal 5032, (97105-970) Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil] [migspinelli@yahoo.com.br]
1 Por vezes o que colocamos entre parênteses vem como possibilidade de uma outra tradução. Quando não citamos explicitamente um tradutor, significa que a tradução é de nossa responsabilidade.
2 O amor é a salvação no desamparo: é conforto, luz e esperança no abandono.
3 Significado que remonta a Homero, Odisseia VI. 136: “γυμνός περ ἐών = embora estivesse nu”; XI. 607: “γυμνὸν τόξον ἔχων = tendo o arco desarmado”.
4 Veja a referência platônica: “ἐν ταῖς παλαίστραις γυμναζομένας = lutarem nuas (ou exercitarema a ginástica) nas palestras” (República V. 452 a10).
5 Remetemos o leitor à Spinelli (2016a: 603-643; 2016b: 32-58).
6 Cfr. Phillips & Pritchard (2003).
7 Dedicamos a esse respeito um artigo “O eleuthéros da Grécia: o despertar da liberdade” (2018: 1-11).
8 Cfr. Górgias 463 b; 464 d – 465 e; 500 e; 517 d-e; 518 b-c; 521e – 522 a.
9 Cfr. Aristóteles, Política VII. 16. 1335 a 36- 41 – 1335 b 1-12 – tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes (1998).
10 Cfr. Górgias 464 a-b; 465 c; 504 a; Samama (2003).
11 Cfr. República III. 410 b; Clítofon 408 e – 409 b; Sofista 227 a, 229 a.
12 Respectivamente: Protágoras 326 b: traduzidos de “εὐρυθμίας τε καὶ εὐαρμοστίας”; República IV. 442 a2: “ἁρμονίᾳ τε καὶ ῥυθμῷ”; VII. 522 a4-6: “ἁρμονίαν εὐαρμοστίαν (...) ῥυθμὸν εὐρυθμίαν”.
13 Cfr. Xenofonte, Constituição espartana V. 8-9; Górgias 452 b.
14 Cfr. Diels & Kranz, Crítias B 32; Clemente de Alexandria, Stromateîs VI. 9.
15 “(...) quam contrectationes et amores soluti et liberi!”.
16 Cfr. Aristóteles, Política VII (ou IV) 15, 1334 a 23. Os latinos derivaram do termo σχολή o que denominamos de escola: um lugar reservado para o repouso e o sossego em favor da concentração da mente em vista do estudo. Era o tempo livre e/ou o ócio (a σχολή) que também definia a condição do ἐλεύθερος da πόλις. Como escrevemos em outro lugar, no Ética e Política: a edificação do éthos cívico da paideia grega (2017: 159), o mais livre, em termos superlativos, não era exatamente quem tinha que se debater na lide cotidiana das ocupações ou dos ofícios, e sim aquele que estava em condições de se ocupar consigo mesmo e, inclusive, com a administração da πόλις ao modo de quem administrava os próprios bens!
17 Cfr. Plutarco, Vidas paralelas. Licurgo XXI. 14. 1-2; 15. 14; XXIV. 16. 7; Platão, Leis I. 625 c.
18 Cfr. República III. 403 c-d; III. 410 b-c; Timeu. 18 a; 88 b – 89 a; Clítofon. 407 c. O conceito de “ginásio” substantivou de tal modo a saúde e o bem-estar a ponto de vir a ser sinônimo de o lugar ou o recinto da saúde e do bem-estar. Clemente de Alexandria, por exemplo, refere-se ao conceito de “cama firme” como “o ginásio natural do sono” (Pedagogo II. 9).
19 O entre aspas pertence à tradução de Carlos Alberto Nunes; cfr. também República V. 458 c-d
20 Esta mescla entre liberdade de dizer e franqueza é característica em Platão: indica a liberdade movida pelo desejo de dizer verdade (República VIII. 557 b; VIII. 567 b).
21 Cfr. República VIII. 557 b; 567 b; Banquete 240 e; Cármides 156 a; Carta XIII. 362 c.
22 Cfr. Tucídides, História da guerra do peloponeso I. 4; Heródoto, História III. 122.
23 Cfr. Aristóteles, Constituição de Atenas: sobre Drácon, Cap. IV; Sólon, Caps. V-XIII; Clístenes, Caps. XX-XXII.
24 “Segundo Sosícrates, Sólon estava em seu apogeu por volta da 46ª Olimpíada, quando, no terceiro ano (por volta de 549 a.C.), ele veio a ser arconte em Atenas, e nessa época elaborou as suas leis. Ele morreu em Chipre aos oitenta anos de idade” (Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres I. 2. 62 – o entre parênteses foi acrescentado).
25 Cfr. Cícero, República II. 2.
26 Tema que desenvolvemos no Ética e Política: a edificação do éthos cívico da paideia grega (2017: 95ss.).
Ediciones y traducciones
1. Amaral de Almeida Prado, A.-L. (trad.) (1999). Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Livro I. São Paulo: Martins Fontes.
2. Bréguet, E. (trad.) (1981). Cicéron. La République. Livre I. Paris: Les Belles Lettres.
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7. Da Gama Kury, M. (trad.) (1987). Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Tradução de, Brasília: UnB.
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12. Fowler, H. N. (1921). Plato. Theaetetus. Sophist. Cambridge, MA: Loeb Classical Library, Harvard University Press.
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18. Nunes, C. A. (1988). Platão. República. Pará: Universidade Federal do Pará.
19. Rico Gómez, M. (1989). Xenofonte. La República de los Lacedemonios. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.
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23. Van Daele, H. (trad.) (2009). Aristophane. Comédies. Tome I. Introduction. Les Acharniens. Les Cavaliers. Les Nuées. Paris: Les Belles Lettres.
24. Vieira, T. (trad.) (2011). Homero. Odisseia. São Paulo: Editora 34.
Bibliografía citada
25. Phillips, D. J. & Pritchard, D. (eds.) (2003). Sport and Festival in the Ancient Greek World. Swansea, UK: Classical Press of Wales.
26. Samama, E. (2003). Les médecins dans le monde grec. Sources épigraphiques sur la naissance d’um corps medical. Genève: Droz.
27. Spinelli, M. (2016a). “O ciclo de estudos básicos (egkýklios paideía) da escolaridade grega”. En Revista Educação e Filosofia 30/60; 603-643.
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29. Spinelli, M. (2017). Ética e Política. A edificação do éthos cívico da paideia grega. São Paulo: Loyola.
30. Spinelli, M. (2018). “O eleuthéros da Grécia: o despertar da liberdade”. En Acta Scientiarum. Human and Social Sciences 40/1, UEM/Maringá; 1-11.
Recibido: 23-04-2019
Evaluado: 18-05-2019
Aceptado: 20-05-2019