Población & Sociedad 2025, Vol. 32 (2), pp. 1-11

DOI: http://dx.doi.org/10.19137/pys-2025-320206


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NOTAS / NOTES

Entre a Liberdade e a Precarização: Nomadismo Digital e Reconfigurações Turísticas na América Latina

Between Freedom and Precarisation: Digital Nomadism and Tourism Reconfigurations in Latin America

Edgar Romario Aranibar Ramos 

University of Alberta, Canadá.

edgarrom@ualberta.ca 

Jordana de Souza Cavalcante

Universidade de São Paulo, Brasil.

jordanacavalcante@usp.br 

Rosy Melany Parizaca Ninaja 

Universidad Nacional de San Agustín de Arequipa, Perú.

rparizacan@unsa.edu.pe 


Resumo

O estudo analisa criticamente o nomadismo digital como expressão contemporânea do capitalismo de mobilidade na América Latina. A partir de uma abordagem teórico-interpretativa e da revisão de literatura recente (2020–2025), discute como os discursos de liberdade e autonomia encobrem novas formas de dependência, desigualdade e precarização. Os resultados apontam regimes seletivos de mobilidade e lacunas jurídicas que reproduzem assimetrias entre turismo, trabalho e cidadania global.

Palavras-chave: nomadismo digital; mobilidade; precarização; turismo; América Latina; ODS 8 – Trabalho decente e crescimento econômico

Abstract

This study critically examines digital nomadism as a contemporary expression of mobility capitalism in Latin America. Drawing on a theoretical-interpretative approach and a review of recent literature (2020–2025), it explores how discourses of freedom and autonomy conceal new forms of structural dependency, territorial inequality, and labour precarisation. The findings reveal selective mobility regimes and legal gaps that reinforce asymmetries between tourism, work, and global citizenship, exposing the persistence of unequal power relations within the geography of mobility.

Keywords: digital nomadism; mobility; precarisation; tourism; Latin America; SDG 8 – Decent Work and Economic Growth


Recibido: 27/10/2025 - Aceptado: 17/11/2025

Introdução

Nas últimas duas décadas, o avanço das tecnologias digitais, flexibilização do trabalho e consolidação da cultura da conectividade transformaram radicalmente as formas de mobilidade e de produção. Nesse contexto, o nomadismo digital emerge como um fenômeno social e econômico que expressa a intersecção entre o trabalho remoto e o turismo de longa duração, sustentado por ideais de liberdade, autenticidade e realização pessoal (Pignuoli, 2022). No entanto, por trás dessa narrativa otimista, o fenômeno revela contradições profundas, especialmente em territórios do Sul Global, onde as promessas de autonomia coexistem com novas formas de dependência, desigualdade e exclusão (de Sá Teles et al., 2025). A América Latina, em particular, tornou-se um laboratório dessas tensões, na medida em que acolhe fluxos de trabalhadores móveis internacionais e adapta suas políticas migratórias e turísticas a uma economia global da mobilidade. Nessa região, nem todos os cidadãos necessitam de um visto específico para exercer atividades de trabalho remoto, em virtude dos acordos de integração regional, como o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a Comunidad Andina de Naciones (CAN), que garantem certos direitos de residência e circulação a nacionais de países membros. Por outro lado, nem todos os cidadãos do mundo podem solicitar o visto de nômade digital, mesmo dispondo de condições econômicas para tal, o que evidencia o caráter seletivo e geopolítico dessas políticas (Ramos & Pacco, 2025).

O problema que orienta esta reflexão reside justamente nesse paradoxo: como discursos e práticas que exaltam a liberdade individual e a mobilidade global se traduzem, na realidade latino-americana, em processos de precarização do trabalho e de reconfiguração turística dos territórios. Essa questão é sintetizada na pergunta central que guia o ensaio: de que formas o discurso de liberdade e mobilidade associado ao nomadismo digital se traduz, na América Latina, em novas formas de precarização do trabalho e de reconfiguração turística dos territórios? O objetivo geral é analisar criticamente as dimensões políticas, simbólicas e econômicas do nomadismo digital, destacando seus efeitos sobre as formas de trabalho, as dinâmicas urbanas e as hierarquias de mobilidade regionais. Especificamente, busca-se compreender como o turismo e o trabalho remoto convergem em uma racionalidade estética e produtiva que reforça dependências históricas entre Norte e Sul globais.

Metodologicamente, o trabalho assume um caráter teórico-interpretativo, baseado na análise de literatura sobre mobilidade, trabalho e turismo. O enfoque é ensaístico e argumentativo, sustentado por uma leitura crítica de categorias como liberdade, mobilidade e precarização, interpretadas à luz do capitalismo de mobilidade e da colonialidade da circulação. A proposta não é descrever empiricamente o fenômeno, mas problematizar suas implicações sociais e territoriais a partir de uma perspectiva latino-americana.

O nomadismo digital como sintoma do capitalismo de mobilidade

O nomadismo digital emerge como expressão paradigmática do capitalismo de mobilidade (Allis et al., 2020), no qual a circulação de corpos, dados e capitais adquire valor econômico e simbólico. A promessa de liberdade e autonomia articula-se à lógica neoliberal de autogestão e performance permanente. A mobilidade, antes transgressora, converte-se em capital de movimento, transformando a capacidade de deslocar-se em recurso produtivo e distintivo (Hall, 2005; Cresswell, 2010). Assim, o nômade digital encarna as contradições de uma sociedade que celebra a fluidez, mas depende de infraestruturas estáveis e desigualdades territoriais para sustentá-la.

O discurso que envolve o nomadismo digital —impulsionado por imagens de juventude conectada em paisagens exóticas— constitui um mito da mobilidade libertadora, ocultando a precarização laboral e a privatização do risco (Cook, 2023). A aparente independência do trabalhador remoto disfarça a ausência de proteção social e vínculos formais. O nomadismo digital não rompe com o trabalho assalariado, mas o reconfigura sob o capitalismo cognitivo e a cultura da performance (Sayarı & Coşkun, 2024), instaurando uma disciplina internalizada sob a retórica da autenticidade.

Olga Hannonen (2025) evidencia que sua geografia se apoia em políticas de geoarbitragem, explorando diferenças de custo entre países e gerando novas assimetrias entre Norte e Sul globais. Essa mobilidade não desafia fronteiras, mas as reinscreve: entre os que circulam com conectividade e os que permanecem imobilizados por barreiras econômicas, legais ou raciais (Axelsson, 2022). A colonialidade da mobilidade (Aranibar, 2024) manifesta-se na América Latina, onde destinos turísticos tornam-se territórios de serviço enquanto cidadãos locais enfrentam restrições de mobilidade.

A trajetória dos nômades digitais reflete um processo de despadronização biográfica (Henkens, 2025): o deslocamento constante simboliza experimentação e desenvolvimento pessoal, mas também a ausência de horizontes estáveis e de amparo coletivo. A liberdade é regulada por infraestruturas digitais, plataformas e regimes de visto que definem quem pode ser nômade e onde (Hannonen, 2025).

Essa condição remete ao que Mimi Sheller e John Urry (2006) denominaram “novo paradigma das mobilidades”, em que o deslocamento não é mero movimento físico, mas um campo de poder, emoção e diferenciação social. Toda mobilidade implica fricções, ritmos e restrições (Cresswell, 2010), que delimitam o seu caráter político. No caso latino-americano, a adesão a esse modelo é assimétrica: enquanto elites criativas circulam por capitais globais e destinos turísticos, a maioria permanece confinada em mobilidades forçadas, precárias ou informais. O nomadismo digital, longe de dissolver o território, o reterritorializa segundo lógicas de exclusividade: “paraísos móveis” para alguns e “zonas de serviço” para outros. Pensá-lo criticamente significa compreender que o capitalismo de mobilidade não é apenas metáfora da fluidez, mas uma infraestrutura desigual de acesso à liberdade. O desafio teórico consiste, portanto, em reconhecer no nomadismo digital menos um ideal cosmopolita e mais um sintoma das desigualdades de um capitalismo que faz do movimento um privilégio e da estabilidade um luxo.

Turismo, trabalho e a estetização da produtividade

O nomadismo digital, embora narrado como libertador ao conciliar trabalho e lazer, revela uma profunda transformação na relação entre produtividade e experiência turística. Ao fundir mobilidade laboral e promessa estética de vida criativa, o fenômeno reconfigura o imaginário do turismo e o ethos do trabalho sob o capitalismo tardio. Longe de representar emancipação, expressa a estetização da produtividade —eficiência e desempenho traduzidos em estilos de vida consumíveis e legitimados como experiências autênticas—.

O discurso da “vida produtiva em movimento”, amplamente difundido por plataformas digitais e pela cultura visual do Instagram, transforma o trabalho remoto em espetáculo. Cristina Miguel et al. (2025) observam que os nômades digitais constroem cuidadosamente uma imagem de autonomia e liberdade, enfatizando lazer e exotismo em detrimento da labuta cotidiana, criando uma narrativa estética de produtividade prazerosa. Tal representação converte o trabalho em performance turística e o espaço de produção em cenário simbólico, onde o “paradisíaco” e o “eficiente” se fundem.

A experiência laboral dos nômades digitais, conforme Erika Polson (2025), prolonga o “global sense of workplace”: cafés, praias e coworkings tornam-se territórios híbridos, em que mobilidade é capital simbólico e conectividade, imperativo econômico. A dissolução das fronteiras entre turismo e trabalho desloca, sem eliminar, a subordinação às lógicas neoliberais, mascarando dependências sob estética de liberdade. A flexibilidade oculta a ausência de direitos e a autoexploração sustentada por métricas de desempenho internalizadas.

Erdal Arslan (2024) destaca o “turista-trabalhador”, cuja mobilidade, motivada por autenticidade e pertencimento global, dinamiza economias locais, mas acentua gentrificação e precarização, reproduzindo desigualdades Norte-Sul. Cidades latino-americanas como Medellín, Cidade do México e Florianópolis tornaram-se polos de “turismo de produtividade”, onde custo acessível e infraestrutura digital convivem com exclusão social.

A estetização da produtividade manifesta-se também na cultura do coworking e do coliving (Dreher & Triandafyllidou, 2025), dispositivos de governança da mobilidade que institucionalizam o nomadismo como migração temporária mediada por algoritmos e hierarquias coloniais. O “nomadismo sem fronteiras” é uma ficção de mercado dependente da rigidez das fronteiras e dos privilégios de passaporte.

Metin Kozak et al. (2024) denominam “digital offshoring” a externalização das relações de trabalho para territórios turísticos, onde empresas reduzem custos transferindo infraestrutura laboral ao corpo móvel. O nomadismo converte-se em engrenagem invisível da globalização produtiva: o trabalho torna-se performativo, traduzido em imagens e métricas que reforçam a cultura da autoexposição.

Francisco Lacárcel (2025) demonstra que as plataformas digitais são mediadoras essenciais dessa estetização, ao mesmo tempo que consolidam práticas de sustentabilidade simbólica e consumo consciente como novos valores aspiracionais do nomadismo. Contudo, tais discursos de sustentabilidade e bem-estar operam dentro da lógica do mercado, promovendo um “capitalismo verde nômade” que reinterpreta o deslocamento constante como expressão ética e estética de um modo de vida moderno.

Assim, a articulação entre turismo, trabalho e estetização da produtividade evidencia que o nomadismo digital não é apenas um estilo de vida, mas um sintoma do capitalismo de mobilidade. Sob a promessa de liberdade, ele reproduz desigualdades globais, transforma territórios em produtos e corpos em interfaces da economia criativa. A América Latina, com sua atratividade simbólica e econômica, emerge como laboratório dessa nova racionalidade, onde o trabalho e o turismo se tornam indissociáveis na fabricação de subjetividades móveis e mercantilizadas.

Liberdade condicionada: precarização e dependência

O discurso em torno do nomadismo digital é frequentemente estruturado sobre a promessa de autonomia, liberdade e autogestão, mas essa narrativa, quando observada em sua materialidade sociológica e econômica, revela um conjunto de dependências estruturais e precarizações invisibilizadas. A noção de “liberdade” que permeia a vida dos nômades digitais é, na verdade, uma liberdade condicionada, mediada por infraestruturas digitais corporativas, desigualdades globais de mobilidade e dinâmicas de mercado que reproduzem hierarquias entre o Norte e o Sul globais. Assim, o que se apresenta como emancipação individual acaba se revelando como uma forma sofisticada de sujeição ao capitalismo de mobilidade e às suas lógicas neoliberais de flexibilidade e autovigilância.

Essa tensão entre o ideal de liberdade e a experiência concreta da dependência serve como fio condutor desta seção, articulando a dimensão subjetiva do trabalho remoto às estruturas políticas e econômicas que o sustentam.

Mari Toivanen (2025) descreve esse paradoxo como o “freedom paradox”, um fenômeno em que o desejo de fugir do trabalho assalariado tradicional se converte em uma mimetização de suas dinâmicas, agora descentralizadas e estetizadas. Em seus achados etnográficos em Mallorca, observa que os nômades digitais, ao rejeitarem o modelo de escritório, acabam reproduzindo seus próprios “micro-escritórios móveis”, regidos por prazos, produtividade e métricas pessoais. A transição para uma vida “livre” acaba, assim, transformando a disciplina do trabalho em autogestão emocional e performativa, o que conecta diretamente essa lógica à estetização da produtividade discutida na seção anterior. Essa liberdade, portanto, não rompe com a estrutura disciplinar do trabalho; ela apenas a desloca para um regime individualizado, onde o controle é internalizado e a precariedade é mascarada por uma estética de autonomia.

De forma complementar, Blair Wang et al. (2025) argumentam que o nomadismo digital expressa uma “emancipação pós-moderna”, uma forma de libertação individual que, embora real para os sujeitos que a vivenciam, entra em tensão com a tradição moderna de emancipação coletiva. Essa emancipação fragmentada e atomizada dissolve os vínculos sociais e políticos do trabalho, substituindo-os por uma ética de autossuficiência e empreendedorismo de si. No contexto latino-americano, tal tendência é particularmente preocupante, pois a chegada de nômades digitais estrangeiros frequentemente intensifica desigualdades territoriais e pressiona infraestruturas urbanas já precarizadas, como apontam David Navarrete et al. (2025) no caso da Cidade do México, onde a presença massiva desses trabalhadores globais impulsiona a gentrificação transnacional e a exclusão socioterritorial.

A dependência estrutural também se manifesta nas políticas estatais que regulam a mobilidade global. Hari KC e Ana Triandafyllidou (2025) mostram que os vistos para nômades digitais —embora apresentados como instrumentos de inclusão e inovação— funcionam como novos regimes migratórios seletivos, acessíveis apenas a indivíduos com renda elevada, passaportes fortes e capital tecnológico. Trata-se de uma mobilidade “hiperseletiva”, que reforça a hierarquia global da circulação, transformando a liberdade de deslocamento em um privilégio regulado. Na América Latina, onde vários países (ver Tabela 1) adotaram tais vistos, o resultado é a coexistência de duas formas de mobilidade: uma globalizada e privilegiada, outra local e restrita, marcada por barreiras documentais e desigualdades de classe e nacionalidade. Esse contraste entre regimes de mobilidade revela como a colonialidade do poder persiste na governança contemporânea dos deslocamentos, reproduzindo o direito de circular como privilégio de poucos. Cabe notar que alguns países na região, embora tenham desenvolvido decretos para criação de leis perante os vistos de nómades digitais, ainda não estão considerando aplicações de visto, como é o caso do Peru, com o Decreto Legislativo n.° 1582. Também, apresenta-se o cenário de países como o Chile e o México que não tem visto de nômades digitais, mas tem outro tipo de status migratório para as pessoas que precisam de um visto para o ingresso e/ou permanência, “Transitory Stay Visa” e a “Visa de Residente Temporal”, respectivamente.


Tabela 1. Políticas de vistos para nômades digitais na América Latina

País

Duração típica

Requisitos

Argentina

6 meses (renovável)

Passaporte válido, renda mínima entre US$ 1.000/mês e US$ 1.500/mês, CV.

Brasil

1 ano (renovável)

Passaporte válido, trabalhar remotamente para empregador ou clientes estrangeiros; renda mínima ~US$ 1.500/mês ou saldo bancário ~US$ 18.000; seguro saúde; antecedentes criminais.

Colômbia

1 ano (renovável)

Passaporte válido, emprego remoto ou prestação de serviços para fora; renda mínima relatada US$ 1.100/mês, seguro de saúde, carta de intenção.

Costa Rica

Extensão de visto de turista de 90 - 365 dias (renovável)

Passaporte válido de países específicos, renda mínima ~US$ 3.000/mês ou ~US$ 4.000/mês caso haja dependente.

El Salvador

1–2 anos (renovável)

Passaporte válido, trabalho remoto; renda mínima relatada ~US$ 1.460/mês; seguro saúde; antecedentes criminais

Equador

1 ano (renovável)

Passaporte válido, trabalho remoto; renda mínima ~US$ 1.350/mês e mais US$ 250 por cada dependente, seguro saúde; antecedentes criminais. Apresenta restrição para certos países.

Panamá

9 meses (renóvavel)

Passaporte válido, carta de trabalho, seguro de saúde, ser funcionário de una transnacional, com ingresso anuais superiores a US$ 36.000

Uruguai

6 meses (renovável) com restricções

Comparecimento presencial depois de ingresso como turista, trabalho remoto; renda mínima (não especificada claramente); carta de intenção, antecedentes criminais, esquema de vacinação,

Fonte: Elaboração própria baseada nas informações consulares dos países listados. Cabe mencionar que nem todas as nacionalidades precisam ou podem solicitar este tipo de visto.


A Tabela 1 sintetiza essas políticas de vistos para nômades digitais na América Latina, evidenciando como a liberdade de circulação é hierarquizada e condicionada por critérios econômicos, tecnológicos e geopolíticos. A visualização permite observar que, embora quase todos os países apresentem programas voltados a atrair trabalhadores remotos, poucos consideram o impacto social e urbano dessas políticas. Essa assimetria revela uma nova forma de dependência regional: a América Latina converte-se em destino funcional do capitalismo de mobilidade, oferecendo infraestrutura e hospitalidade enquanto exporta a estabilidade e o valor agregado do trabalho para o Norte Global.

Do ponto de vista subjetivo, o sentimento de liberdade é atravessado por experiências de solidão, instabilidade e incerteza. Miguel et al. (2025) demonstram que a alta rotatividade espacial e a ausência de vínculos estáveis produzem uma sensação persistente de isolamento, mitigada parcialmente por redes digitais e plataformas de socialização, como grupos de coworking, aplicativos e mídias sociais. A dependência dessas redes tecnológicas, porém, reforça o caráter precário das conexões sociais e evidencia como o digital se torna simultaneamente meio de emancipação e de captura.

Juul Henkens (2025), ao adotar uma perspectiva do ciclo de vida, acrescenta que o nomadismo digital deve ser compreendido como uma fase transitória da juventude global, mais associada à experimentação e à busca por sentido do que a um modo de vida sustentável. Essa transitoriedade, contudo, não elimina seus efeitos estruturais: ao se consolidar como ideal de sucesso e liberdade, o nomadismo digital reconfigura as expectativas sociais sobre o trabalho, a moradia e a mobilidade, deslocando a responsabilidade pela segurança e estabilidade para o indivíduo.

Desse, a liberdade proclamada pelo nomadismo digital é atravessada por múltiplas formas de dependência: das plataformas, dos fluxos financeiros globais, das políticas migratórias e das hierarquias territoriais. O caso latino-americano torna essas contradições especialmente visíveis, sendo um território que, ao mesmo tempo, acolhe e subsidia a mobilidade dos privilegiados, enquanto restringe a de seus próprios cidadãos. A precarização aqui não é apenas econômica, mas simbólica e espacial: um espelho das assimetrias globais travestido de liberdade cosmopolita.

Considerações Finais

O nomadismo digital, embora seja frequentemente apresentado como um símbolo de liberdade e inovação, constitui uma expressão sofisticada das dinâmicas contemporâneas do capitalismo de mobilidade. A promessa de autonomia e flexibilidade converte-se em prática de autogestão disciplinar, em que o indivíduo internaliza a lógica da produtividade e da performance sob a aparência de escolha pessoal. A América Latina, nesse contexto, revela-se um espaço privilegiado para observar tais contradições: destino turístico e laboral atrativo para trabalhadores móveis do Norte Global, mas também território onde as desigualdades estruturais, históricas e tecnológicas se tornam visíveis na materialidade das políticas migratórias e urbanas.

Os achados teóricos indicam que a liberdade associada ao nomadismo digital é condicionada por infraestruturas, regimes de visto e plataformas que reproduzem hierarquias coloniais de circulação. As políticas de visto latino-americanas, ao mesmo tempo que buscam atrair capital humano e digital, reforçam mecanismos de exclusão. Nem todos os cidadãos precisam ou podem solicitar um visto de nômade digital: por um lado, acordos regionais como o MERCOSUL e a CAN garantem mobilidade diferenciada para residentes da região; por outro, cidadãos de países periféricos fora desses blocos permanecem excluídos, mesmo que possuam recursos econômicos. Além disso, as legislações existentes apresentam vazios significativos sobre os direitos e deveres dos nômades digitais, deixando indefinidas questões como tributação, acesso a serviços públicos e responsabilidades sociais, aspectos que reforçam a informalidade e a precarização desse regime de mobilidade.

A principal contribuição deste trabalho consiste em propor uma leitura crítica e latino-americana do nomadismo digital, deslocando o debate global centrado em experiências do Norte para contextos marcados por desigualdades históricas e dependência estrutural. O ensaio também contribui ao articular as dimensões do turismo, do trabalho e da mobilidade sob o prisma da colonialidade da circulação, revelando como a liberdade de mover-se é, em grande medida, uma construção política e econômica, não um direito universal. Ao relacionar estética, economia e território, o texto evidencia que o nomadismo digital é tanto um projeto de vida quanto uma estratégia de mercado, sustentada por discursos de autenticidade e pertencimento global.

Como caminho para futuras pesquisas, sugere-se aprofundar o estudo empírico das políticas públicas e práticas urbanas associadas à recepção de nômades digitais na América Latina, com especial atenção aos impactos em comunidades locais, dinâmicas imobiliárias e transformações culturais. Também seria relevante examinar a relação entre o nomadismo digital e o turismo sustentável, considerando a crescente pressão ambiental e social que essa forma de mobilidade exerce sobre os destinos receptores.

Entre as limitações deste ensaio, reconhece-se o caráter não empírico da análise, que privilegia a reflexão teórica em detrimento da observação direta dos casos. Ainda assim, essa limitação é também uma escolha metodológica, voltada à construção de um marco conceitual capaz de problematizar criticamente o fenômeno.

Em suma, o nomadismo digital, longe de representar uma ruptura com o trabalho assalariado ou uma revolução na mobilidade global, reafirma as desigualdades do sistema-mundo capitalista, transformando a circulação em privilégio e a precariedade em estética de liberdade. A América Latina emerge, portanto, como palco onde se materializa a promessa e o limite da mobilidade contemporânea, um espaço de hospitalidade assimétrica que acolhe os fluxos globais enquanto carrega o peso das dependências históricas. Pensar o nomadismo digital a partir do Sul Global é, por fim, um convite à crítica das epistemologias dominantes da liberdade e à construção de alternativas mais justas, inclusivas e decoloniais para o futuro do trabalho e do turismo.

Referencias

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